'Só porque é favela ninguém veio consertar', dizem moradores sem luz em SP
Sem energia elétrica por mais de 70 horas, moradores do Capão Redondo e Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, relatam prejuízos em comércios, casas parcialmente destruídas e alimentos estragados. O UOL esteve na região na tarde de segunda (6) — o fornecimento foi interrompido na sexta (3), após um temporal com rajadas de vento.
O que aconteceu
A sensação é de "tristeza e revolta", afirmam os moradores. Segundo a Prefeitura de São Paulo, a população atendida pela Subprefeitura do Campo Limpo é de aproximadamente 650 mil pessoas — a área inclui os distritos de Capão Redondo, Campo Limpo e Vila Andrade. O Mapa da Desigualdade de 2022, publicado pela Rede Nossa São Paulo, aponta que um a cada cinco domicílios de Capão Redondo e Campo Limpo é em favela.
A Enel Distribuição São Paulo informou que o fornecimento deve ser normalizado hoje. Em nota enviada ontem à noite, a companhia afirmou que havia restabelecido a energia para 83% dos clientes que tiveram o serviço impactado. (leia mais abaixo)
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O comerciante Francisco João da Silva, 43, dono de um mercado na rua Cinco Irmãos, no Jardim Rebouças, no Campo Limpo, calcula um prejuízo de mais de R$ 6,5 mil. De acordo com ele, a perda foi de R$ 5 mil com produtos que estavam em geladeiras e freezers e mais R$ 1,5 mil com entregas que deixou de fazer.
Ele diz que tentou acionar a Enel ao menos seis vezes, sem sucesso.
Não passou ninguém da Enel aqui na rua, todo mundo está sem luz. Parece que só porque é favela não querem consertar. Economias a gente não tem, se pelo menos pudessem reembolsar a gente.
Francisco João da Silva
"Tudo está descongelado, perdemos tudo", repetiu Francisco ontem, aos clientes. Enquanto a reportagem esteve no mercado, diversas pessoas entraram no local para comprar água, refrigerante e sorvete. O comerciante tinha passado a manhã limpando armários e refrigeradores.
Joguei foram pelo menos 500 pães. Esses dias foram o maior prejuízo que tive na vida.
Francisco João da Silva
"Estamos desde sexta-feira assim, sem fazer nada porque não temos o que vender", diz João Henrique, filho de Francisco, que também trabalha no mercado. Para tentar reduzir os danos, o comerciante decidiu levar alguns alimentos para casa.
Na mesma rua, a comerciante Celi Silva de Oliveira, 36, mantém o mercado aberto para tentar vender produtos não perecíveis. "Ainda não tive coragem de selecionar o que preciso jogar fora", comenta, mostrando a geladeira com alimentos e bebidas descongelados. Ela lamenta que os fins de semana são os dias de maior movimento — e sofreram impacto da falta de energia.
Os sorvetes estão todos derretidos. Ainda não consegui estimar o prejuízo.
Celi Silva de Oliveira
Moradora da região há sete anos, Celi conta que quase todos os vizinhos estão sem energia. "Não vi ninguém da Enel", diz.
O pessoal já é desfavorecido e se sente ainda pior com esse descaso. Tem gente que perdeu a compra do mês.
Celi Silva de Oliveira
O que diz a Enel
A Enel afirmou que "tem priorizado os casos mais críticos, como serviços essenciais" no trabalho de recuperação da rede. Até a noite de ontem, segundo a concessionária, cerca de 1,7 milhão de clientes tiveram o serviço normalizado.
"O vendaval que atingiu a área de concessão no dia 3 de novembro foi o mais forte dos últimos anos e provocou danos severos na rede de distribuição", diz nota enviada à reportagem.
Devido à complexidade do trabalho para reconstrução da rede atingida por queda de árvores de grande porte e galhos, a recuperação ocorre de forma gradual. Em atuação conjunta com Corpo de Bombeiros, Prefeitura e outras autoridades, a companhia tem priorizado os casos mais críticos, como serviços essenciais.
Nota da Enel
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), se reuniram ontem com empresas responsáveis pela distribuição de energia e cobraram planos de atendimento. Nunes afirmou que vai entrar na Justiça contra a Enel caso o serviço não seja restabelecido hoje na capital.
Crise de ansiedade no escuro
Na calçada da sua casa, Cleonice Silvarola, 47, tenta fugir das crises de ansiedade. Acometida por paralisia infantil, ela usa aparelho de oxigênio e sentiu-se mal nos cômodos sem iluminação.
Ela sente falta de ar e não está mais aguentando ficar dentro de casa no escuro.
Clarice Lima Rocha, irmã de Cleonice
O corretor de imóveis Jorge Santos, 50, que vive no Valo Velho, no Capão Redondo, usou o gerador que tem em casa para ajudar um vizinho acamado, que utiliza equipamento de oxigênio. "A filha dele estava desesperada", diz. "Usei uma extensão no gerador e fizemos a energia chegar até ele."
Matilde Gesteira, 61, gerente da União Popular de Mulheres e que mora na mesma região, afirma que parte das telhas da casa onde vive desabou na sexta. "Fiquei com medo de entrar e o telhado cair em cima de mim. Acabei de consertar", contou na tarde de ontem.
O céu estava muito escuro e o vento, forte. Fiquei com medo de morrer ali sozinha.
Matilde Gesteira
O filho dela havia feito compras pouco antes do temporal com o vale-alimentação que recebe da empresa — e, segundo ela, os alimentos comprados estragaram. "Tirei poucas coisas que conseguimos aproveitar, mas perdemos quase tudo."
Matilde teme, agora, mais prejuízos com aparelhos eletrônicos — como a energia não havia voltado até ontem, ela não sabia o que ainda estava funcionando. "Não sei o que vai acontecer porque estavam todos na tomada."
Com a temperatura abaixo dos 20 graus, a falta de luz fez Matilde e o filho tomarem banho frio antes de se prepararem para trabalhar, na segunda. "Fiquei com dó do meu filho tomando um banho gelado as 7h."
Moradores e comerciantes da vizinhança relatam que a força do vento derrubou placas de estabelecimentos, além de muitas árvores. "O vento foi muito violento. Também choveu granizo por aqui", diz Matilde.