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Brumadinho, 5 anos da tragédia: As histórias que não vivi

Carolina Lage dos Santos não pôde ter o pai no casamento, mas o homenageou: 'Sempre presente' Imagem: Arquivo pessoal

Luciana Quierati

Do UOL, em São Paulo

25/01/2024 04h00Atualizada em 25/01/2024 07h42

O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG) interrompeu as histórias das 270 pessoas mortas — entre elas duas gestantes — com seus familiares e amigos. Nos relatos a seguir, duas filhas, um filho, uma mãe e uma esposa de vítimas da tragédia contam planos e sonhos que não puderam ser compartilhados e falam sobre o que têm feito para prosseguir.

Carolina: 'Pai sempre presente'

"Na época do crime, eu estava estudando geologia. Então eu entendia tudo o que estava acontecendo e a catástrofe que seria, mas guardei para mim. Não tinha coragem de falar com minha mãe e irmã que meu pai estava morto e que não existe essa história de 'rota de fuga' [expressão usada na época para uma eventual saída dos sobreviventes].

Carolina Lage dos Santos usou um terço com a foto do pai em seu casamento Imagem: Arquivo pessoal

Depois da tragédia, eu não conseguia voltar para a faculdade. Demorei muito. Amigas foram até minha casa para conversar, professores e coordenadores também se disponibilizaram a me ajudar de alguma forma. Terminei o curso e me formei, mas eu tive um trauma enorme. Tentei muito continuar na minha área, mas não consigo. Hoje trabalho com papelaria e produtos personalizados.

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Me casei no ano passado. Chorei muito na minha entrada na igreja, porque era meu sonho ter meu pai ao meu lado. E eu não o tive ali, indo até o altar comigo. Mas entrei com um balão em que estava escrito 'pai sempre presente' e com a foto dele no terço que carreguei comigo."

Carolina Lage dos Santos, 22, perdeu o pai, Rogério Antônio dos Santos, na tragédia. Ele tinha 27 anos de Vale e estava prestes a se aposentar. Estava na mina quando ocorreu o rompimento da barragem.

Patrícia: 'Não pude vê-la envelhecer'

"Minha mãe não conheceu os dois filhos do meu irmão e não está vendo o meu filho crescer. Ela vivia fazendo coisas pensando nas visitas que eles fariam a ela no futuro. Plantava árvores de frutas no quintal porque queria que eles se sentassem embaixo para descascar fruta e comer. Ela sonhava em irem pescar juntos.

Maria de Lurdes da Costa Bueno com o neto, meses antes de morrer na tragédia em Brumadinho Imagem: Arquivo de família

O inglês dela era horrível. Não tinha jeito, não tinha santo que salvasse o inglês dela. Mas ela estudava toda semana para poder falar com meu filho [Patrícia mora nos EUA com a família]. Ele fala português, mas ela queria aprender para falar inglês com ele. Houve momentos difíceis nesses cinco anos em que eu queria ter tido um conselho de mãe. Tive dúvidas, e ela seria a pessoa para quem eu iria perguntar. E ela não estava. Também não pude vê-la envelhecer e ajudá-la quando ela mais precisasse de mim.

Mas a gente tem que viver, e no primeiro ano eu tive que fazer essa decisão consciente: eu podia me jogar no luto e não conseguir fazer mais nada ou decidir não sentir isso a toda hora. Claro que acho que as pessoas, às vezes, não têm essa escolha, não conseguem. Mas eu tive que escolher, porque sou mãe, tenho trabalho, tenho família. Dei uma compartimentalizada, senão não dá pra viver."

Patrícia Borelli perdeu a mãe, Maria de Lurdes da Costa Bueno, que está na lista das três vítimas ainda não encontradas, e o padrasto, Adriano Ribeiro da Silva. Os dois estavam na Pousada Nova Estância, que foi atingida pela onda de lama.

Victor: 'A força dela me motiva'

"Nos mudamos do Pará para Belo Horizonte para que eu pudesse fazer faculdade de Cinema. Depois da morte da minha mãe, levei um tempo para conseguir retomar o curso, mas, como tanto eu como ela lutamos muito por esse meu sonho, acabei voltando e concluindo.

A força dela e o que ela me ensinou é o que me motiva. Ela tinha uma frase que não esqueço: 'enquanto existe vida, existe possibilidade'. E também dizia que a gente devia viver intensamente e não ter medo. Ela viajava sozinha. Adorava. E eu estou me preparando para visitar alguns lugares que ela visitou e que me dizia que eu precisava conhecer, a começar por Outro Preto e Tiradentes.

Victor Emanoel Andrade Neris, 23, perdeu a mãe Lenilda Cavalcante Andrade Imagem: Arquivo pessoal

Ela e eu falávamos muito sobre o dia da minha formatura. Dizia que iria levar um cartaz escrito 'não fez mais que a obrigação'. A gente ria muito disso. No começo, pensei em não participar da festa com a turma, que vai ser este ano, porque minha mãe não estará lá, mas, apesar do coração apertado, hoje eu quero celebrar.

E acho que em algum momento devo fazer algum projeto audiovisual para falar sobre as coisas que aprendi com ela, até como forma de fazer uma homenagem."

Victor Emanoel Andrade Neris, 23, perdeu a mãe Lenilda Cavalcante Andrade na tragédia. Ela tinha 36 anos e era funcionária da Vale e estava na mina quando ocorreu a tragédia.

Helena: 'Continuar o trabalho dos meus filhos'

"Ficou um buraco na vida da gente. Eu perdi meus dois filhos, a nora e o neto. As amigas da Camila e do Luiz estão tendo filhos. Sou amiga de muitas mães dos amigos deles, todas elas curtindo os bebês, os netos. Me foi tirada essa oportunidade, essa felicidade de ver a continuidade da vida. Estou com 66 anos e, às vezes, me pergunto: o que é que eu vou fazer agora? Porque eles eram a minha razão de viver.

Helena Taliberti segue o trabalho que os filhos Camila e Luiz Taliberti realizavam Imagem: Arquivo de família

Mas, é pensando no legado deles, que encontro forças. A Camila era advogada, fazia trabalho voluntário com mulheres em situação de violência doméstica, e o Luiz era um arquiteto que trazia para seus projetos os princípios da arquitetura sustentável. Quando amigas e amigos deles nos propuseram criar uma organização que continuasse o trabalho deles e não deixasse que essa tragédia fosse esquecida, eu aceitei.

Criamos o Instituto Camila e Luiz Taliberti em julho de 2019, e hoje a gente trabalha pela defesa dos direitos humanos empoderando grupos vulneráveis, especialmente mulheres, e protegendo o meio ambiente, por meio da arte, conversas com especialistas e eventos públicos.

Criar o instituto nos conectou aos amigos deles, e é isso o que nos dá força para prosseguir. Adotamos uma frase que é: 'tentaram nos enterrar, não sabiam que éramos sementes'. Cada um de nós é uma semente de amor e de justiça."

Helena Taliberti perdeu a filha Camila, o filho Luiz e a nora Fernanda, grávida de 5 meses de seu primeiro neto, Lorenzo. Filhos e nora estavam na Pousada Nova Estância quando veio a lama.

Solange: 'Tínhamos vários planos'

"No começo foi muito difícil. No primeiro dia de aula da Mel, em fevereiro de 2019, o corpo do Francis ainda não tinha sido encontrado. Eu arrumei minha filha com o uniforme azul clarinho e fiz trancinhas nela. Quando estava pronta, ela me disse: 'Mãe, tira foto e manda pro meu pai, e ele ver como eu tô bonita. Que assim ele volta mais rápido'. Eu fiquei sem palavras. Deu uma vontade de chorar, mas eu não podia. Eu sabia que não ia acontecer.

Ainda nos primeiros anos, ela pedia para ligarmos para ele e deixarmos mensagem. Fizemos isso algumas vezes. Ela dizia que ele já não precisava mais trabalhar, que podia vir embora para casa. Mas, com o tempo, a gente foi aprendendo a lidar. Superar, a gente não supera. Não esquece. Mas a gente tenta ficar bem.

Solange Silva e a filha Melissa com Francis Erik Soares Silva, em foto de 2018 Imagem: Arquivo de família

Francis e eu estávamos juntos havia doze anos, mas oficializamos a união só no final de 2018. Nos casamos no civil em novembro, na igreja em dezembro e ele morreu em janeiro. Tínhamos vários planos. Estávamos programando ter um novo bebê ainda naquele ano. Não deu tempo.

Eu queria voltar a estudar, fazer radiologia, e ele me incentivava. Me formei há dois anos. No ano passado, a Mel concluiu a quinta série. No começo, ela disse que nem queria participar da formatura. Mas insisti e ela foi, com aperto no coração. 'Meu pai bem que podia estar aqui'."

Solange Luiza da Cunha Silva perdeu o marido, Francis Erik Soares Silva, que trabalhava como mecânico na mina da Vale. Na época, a filha do casal, Melissa, tinha 6 anos.

Imagem: Arte Carol Malavolta/UOL e imagens Google Earth/© 2023 Maxar Technologies

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