Único passageiro a sobreviver a tragédia: 'Avião virou uma câmara de gás'
Fabiana Stelina
Colaboração para o UOL
31/01/2024 04h00
"Quem olhava a radiografia do meu pulmão, dizia: 'este cara já morreu'". A história de Ricardo Trajano, único passageiro que resistiu ao desastre do voo 820, da Varig, em Paris, em 1973, é surpreendente.
Após 50 anos do ocorrido, Trajano confessa que ainda se pergunta todo dia:
Por que só eu escapei? Na época, 123 pessoas morreram. Todos os outros passageiros e sete tripulantes não resistiram. Só sobreviveram os tripulantes e eu. Me sinto um cara privilegiado e agradeço todo dia o cara lá de cima.
Até hoje, ainda não se sabe a causa do acidente. Um relatório do governo da França sobre o caso apontou como principal hipótese uma ponta de cigarro que foi deixada acesa na lixeira do banheiro. O documento também indicou a possibilidade de falha elétrica, mas diz que essa seria a causa menos provável.
'Me despedi da vida'
Hoje, aos 71 anos e pai de duas filhas, Júlia e Marina, Trajano conta como tudo ocorreu.
"Eu tinha 21 anos e queria muito conhecer Londres. Fazia faculdade de engenharia, era músico e roqueiro. E, naquela época, as bandas de rock não vinham para a América do Sul, só tocavam na Europa e nos Estados Unidos. Então, fui atrás de um sonho. Antes, eu só tinha feito dois voos domésticos. Internacional, foi o primeiro da minha vida", relembra.
Foi em 11 de julho de 1973 que o universitário chegou cedo ao aeroporto para tomar algumas precauções antes da viagem.
"Nunca tive medo de viajar de avião e nem superstição. Mas, tinha o conhecimento e meus amigos sempre me alertavam que o ideal era viajar na última fileira da aeronave caso ocorresse um desastre aéreo. Naquela época, os voos para o exterior eram sempre noturnos. Cheguei cedo porque queria escolher o meu lugar, na cauda do avião."
A escolha da poltrona não foi como Trajano imaginava. "Quando fui comprar a passagem, falei que queria a última poltrona do avião. Mas, fui alertado que não seria possível, pois naquela época a última fileira da aeronave era destinada à tripulação. Antigamente, 17 pessoas trabalhavam a bordo. Eram engenheiros, piloto, copiloto, comissários, chefe dos comissários e uma mulher que ficava fiscalizando se estava tudo correto no voo", explicou.
Sem conseguir comprar o local desejado, o engenheiro precisou se contentar com a penúltima fileira da aeronave. "Fiquei na janela e ao meu lado sobraram duas poltronas. Até que foi confortável."
Fumaça fina e branca que vinha dos fundos da aeronave. Faltando cinco minutos para o pouso no aeroporto de Orly, em Paris, Trajano percebeu uma fumaça próximo aos banheiros. Imediatamente, ele levantou e foi para a frente do avião. Um comissário o mandou retornar ao assento e colocar o cinto de segurança —mas, ele ignorou a orientação.
Trajano relembra que, quando chegou próximo à cabine, percebeu dois comissários em pé e apavorados. Nessa hora, a fumaça já tinha tomado conta de todo o avião. "Virou uma câmara de gás", diz.
Me veio a sensação de morte e me despedi da vida. Foi tudo muito rápido. Comecei a pensar na minha família e amigos.
Ricardo Trajano
Foi nesse momento que o avião começou a inclinar e o piloto e copiloto perceberam que não iam conseguir chegar ao aeroporto. "Só me lembro de cair no chão de bruços. Depois, acordei no hospital".
A notícia da falsa morte
Informação era de que nenhum passageiro havia sobrevivido. Quando a notícia do acidente se espalhou, houve pânico na família de Trajano.
Todos já começaram a correr para ver meu velório e sepultamento, menos a minha mãe, pois ela acreditava que seu filho havia sobrevivido.
A confusão ocorreu justamente porque Trajano foi encontrado em um lugar pouco comum para passageiros. "Em um primeiro momento, acharam que eu era um dos tripulantes. Depois, perceberam que eu era um passageiro e que fui o único deles que sobrevivi. Ligaram para minha família e pediram desculpas."
Sequelas do acidente
O diagnóstico de Trajano logo após ao acidente, além das queimaduras de terceiro grau, era de um edema pulmonar generalizado e hemoptise (expectoração de sangue).
Na primeira radiografia, os médicos olhavam o meu pulmão e perguntavam se a pessoa já tinha morrido. Eram unânimes em dizer que eu não duraria uma semana.
"Eu expelia sangue pela boca a todo instante. Foram dezenas de transfusões de sangue, meu estado era caótico. Mas, graças a Deus, na parte pulmonar não fiquei com sequelas", explica.
Cartazes de incentivo
Trajano acredita que encontrou forças para sair do CTI porque seus pais escreviam cartazes de incentivo. "Eles não podiam entrar no CTI e a enfermeira me mostrava os cartazes. Eram frases simples do tipo: 'Vamos lá Ricardo!', 'Força Ricardo!', 'Ricardo, você vai sair logo daí!'. Elas me motivavam demais".
Dezenas de cartas de pessoas desconhecidas também foram o gás para que ele tivesse forças para superar o momento difícil.
Eu recebia dezenas de cartas e, por incrível que pareça, a maioria era de pessoas que eu não conhecia, me mandando força, isso me ajudava muito também, eu lia e relia aquilo todos os dias, como se fosse uma bíblia.
Sem traumas
Depois de passar pelo acidente, Trajano não ficou com traumas de voar. Um ano e meio após o ocorrido, em fevereiro de 1975, ele voltou a viajar. "Viajei com um grande amigo, fui para Londres e depois fui a Paris, onde visitei toda a equipe do hospital que participou do meu tratamento. Foi muito emocionante", conta.
Inclusive, ele ainda tem contato com um outro sobrevivente do voo. "Tenho contato até hoje com um comissário francês que também escapou. O nome dele é Alain Tercys. É sempre emocionante quando nos falamos".
Para ficar eternizado
No último ano, Trajano escreveu 13 capítulos sobre a história do acidente. "Estou procurando uma editora, para ver se eu consigo lançar o livro, quanto antes".
Atualmente, ele dá palestras sobre motivação, superação de desafios e produtividade, baseado na dificuldade em que passou naquele ano.