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O que o caso do baiano que nasceu mestiço e morreu branco diz sobre racismo

Antonio Arantes trabalhou na construção civil, entre outros setores Imagem: Arquivo Pessoal

Do UOL, em São Paulo

12/03/2024 04h00

Antônio Arantes nasceu "mestiço", viveu como "pardo" e morreu "branco", de acordo com suas certidões de nascimento e de óbito e outros documentos. Analisada em uma tese de doutorado apresentada na Unicamp que investiga o racismo no Brasil, a mudança é vista como reflexo da ascensão social do baiano, de operário a executivo. O tema voltou às manchetes nos últimos dias, após a USP não aceitar a autodeclaração de um candidato que se identificou como pardo.

O que aconteceu

Arantes nasceu em 1930. No estudo do historiador Lucas Torres, ele é descrito como um homem pardo e de baixo letramento que alcançou sucesso profissional em Salvador, a partir dos anos 1960. Morto em 2009, ele escreveu uma autobiografia no fim da vida, cujos dados foram cruzados com outras fontes pelo pesquisador.

Autor realizou 50 entrevistas para a tese. Torres também analisou cartas, fotos e outros documentos reunidos por Arantes ao longo da vida, além de outras fontes, para a tese intitulada "O perfil do administrador que a empresa precisava: mobilidade social, escrita de si e marcadores de diferenças na trajetória de Antônio Arantes".

Trabalhador foi de servente a executivo na fábrica de tecidos Boa Viagem. O baiano trabalhou na empresa por mais de 20 anos. Depois, atuou na construção civil e em outros setores. Os bons salários lhe permitiram se aposentar com dois imóveis quitados, algo raro entre negros até hoje.

Arantes transformou estigmas racistas em marcas pessoais. Usava roupas finas e vocabulário rebuscado para contestar o imaginário que associa pessoas como ele à pobreza. Também dedicava especial atenção ao trabalho, desafiando o preconceito que vincula negros a preguiça e despreparo.

Ao cruzar as linhas de classe, um sujeito não branco teria que lutar para fugir de estereótipos imputados à gente de cor por quem se considerava branco: mostrar-se como alguém sem vícios, rigorosamente honesto e cumpridor dos seus deveres, que fosse capaz de manter a família organizada etc
Trecho da tese de Lucas Torres

Ascensão social anterior à classe média negra em Salvador teve consequências. Torres destaca a não identificação de Arantes com a negritude como uma delas. A falta de um diploma universitário e a condição de empregado (e não de empresário ou funcionário público) são outras diferenças de Arantes em relação à classe média negra que surge a partir dos anos 2000.

Não se trata de defender qualquer privilégio dos pardos, socialmente ascendentes ou não, mas de notar as peculiaridades da racialização que eles experimentaram e a instabilidade de suas conquistas diante do racismo e de outros preconceitos ao longo do século 20. Arantes foi classificado como mestiço ao nascer, como pardo em diversos momentos da vida e como branco na certidão de óbito. Mas uma de suas netas, na entrevista que me concedeu, se apresentou como negra sem precisar ser perguntada sobre o assunto
Lucas Torres, autor da tese de doutorado sobre Antônio Arantes, em entrevista ao UOL

No Brasil, não falar abertamente sobre preconceito era condição para ascensão de não brancos, diz especialista. Professor da Duke University e integrante da banca que avaliou o trabalho de Torres, o historiador John French cita o escultor Aleijadinho e o escritor Machado de Assis, ambos negros, como exemplos. Para ele, o estudo se destaca por mostrar as formas encontradas para driblar o preconceito.

O estudo usa a biografia para fazer uma rica investigação social e traz uma nova visão sobre o país e suas complexidades, menos estereotipada do que o usual. Ainda que Arantes não tenha sido um militante, ele foi a prova da capacidade dos afrodescendentes e desafiou preconceitos sem confrontá-los frontalmente

Uma cor, vários termos

Além de "mestiço" e "branco", Arantes também foi oficialmente "pardo". Uma das vias de sua certidão de nascimento, de 1946, o classifica assim, refletindo a recuperação do termo pelo Censo realizado seis anos antes. A mesma palavra consta em seu registro militar, de 1965, e em duas carteiras de trabalho, de 1948 e 1969.

Usado pelo IBGE, o termo pardo é alvo de discussões hoje. O instituto define negros como a soma de pretos e pardos. Mas muitos afrodescendentes preferem ser tratados apenas por negros. Um dos motivos é o fato de "pardo" criar uma subcategoria para não brancos, algo que não existe para brancos. Historicamente, o termo também já foi usado para se referir à população indígena.

Hoje, pardos são maioria na população brasileira. De acordo com o último censo, 92,1 milhões se identificam assim. A fatia superou a de brancos, que são 88,2 milhões e eram o maior segmento desde 1991.

No seu tempo, Arantes era tratado socialmente como "moreno". Ele também se referia assim à mulher, Gildete, e à mãe, Laura. O estudo explica que o termo era corrente até os anos 1970 como uma forma respeitosa de se referir a pessoas como ele — já que "mulato" ou "pardo" poderiam ser considerados ofensivos.

Aluno aprovado na USP via cotas foi barrado

Estudante perdeu vaga em medicina por não ser considerado pardo. Alisson Rodrigues, de 18 anos, se declarou pardo para ter direito às vagas reservadas pela política de cotas da USP no último vestibular. Sua mãe se identifica como negra e o pai, branco. Após Rodrigues ter sido considerado branco, sua família procurou auxílio da Defensoria Pública, em fevereiro.

Depois do caso, reitor da USP fala em mudanças no sistema. Em entrevista ao Estadão, Carlos Carlotti Junior afirmou que as entrevistas passarão a ser presenciais e não mais via internet — entre outros ajustes.

Cotas aumentaram número de negros em medicina da USP, mas brancos ainda são maioria. Um levantamento feito pelo UOL em 2022 indicava que a proporção era de um negro para cada cinco brancos, em 2018, caindo para um negro para cada três brancos, quatro anos depois.

USP tem sistema de cotas desde 2018. Pela política, 37,5% das vagas da universidade são reservadas para estudantes negros que tenham cursado ensino médio em escolas públicas. A proporção segue a fatia representada pelo grupo no estado de São Paulo, segundo o Censo.

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