Senado x STF: PEC das Drogas reforça que PM decide punição e ignora racismo
A PEC das drogas, aprovado na CCJ do Senado nesta quarta, reforça o papel da PM para decidir pela punição ou prisão de usuário de substâncias ilícitas. O projeto se contrapõe ao julgamento da descriminalização do posse de maconha no STF.
O que aconteceu
Sem diferenciar usuário de traficante não há critério para detenções, diz STF. Durante a retomada do julgamento sobre porte da maconha no dia 6, o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, reforçou a necessidade dessa distinção para corrigir o limbo legal que abre precedentes para o racismo no momento da abordagem policial.
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Barroso defende que o Judiciário precisa apontar a quantidade de drogas compatível com o uso, para evitar a discriminação de pretos e pobres. Para o ministro, se não houver definição de uma quantidade de maconha que deve, em regra, ser considerada como de uso pessoal, a decisão continuará nas mãos da autoridade policial em cada caso.
O Supremo não definiu ainda quantidade que diferencia um usuário de um traficante. Barroso, por exemplo defende o limite de 25 gramas, para consumo próprio. Acima dessa quantidade, a interpretação seria que o entorpecente é mantido para tráfico.
O que está em jogo é evitar a aplicação desigual da lei em razão da cor e das condições sociais e econômicas do usuário (...) E esse filme nós já assistimos e sabemos quem morre no final: o homem negro e pobre que porta dez gramas de maconha vai ser considerado traficante e enviado para a prisão.
Luís Roberto Barroso, ministro do STF
O que o Senado quer fazer?
A proposta aprovada da Comissão de Constituição e Justiça prevê dar à PM o poder decisório. O relatório do senador Efraim Filho (União-PB) concede, na prática à autoridade policial e ao juiz de primeira instância o poder de decidir a distinção entre usuários e traficantes.
É crime, independente da quantidade, segundo a PEC. O texto da proposta afirma que "a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes ou drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". A Lei de Drogas, de 2006, também contempla o tema de maneira genérica.
Falta diferenciar usuário e traficante na PEC do Senado. Efraim Filho incluiu no texto a necessidade de a lei diferenciar os usuários de drogas dos traficantes.
Juiz de primeira instância terá a palavra final. Efraim também acatou emenda do senador Rogério Marinho (PL-RN) para que a distinção se baseie nas "circunstâncias fáticas do caso concreto". Mas a decisão final será de um juiz.
O juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta, os antecedentes do agente, ou seja: dá a discricionariedade da definição se é ou não porte ou tráfico a quem faz de fato a apreensão, quem tá 'com a mão na massa'.
Rogério Marinho, senador de oposição
Votação à vista depois da Páscoa. Após a aprovação da CCJ, a PEC das Drogas deve seguir os trâmites legislativos até chegar ao plenário. A previsão na Casa é que a matéria possa ser apreciada pelos senadores depois da Páscoa.
Guardanapo suspeito
O UOL conversou com pessoas que afirmam ter tido a casa revistada pela polícia sem mandado, em busca de evidências de tráfico de drogas. As pessoas ouvidas moram em bairros periféricos de regiões distintas do Brasil. Os nomes foram trocados, respeitando a condição de anonimato.
Em Fortaleza, um guardanapo foi usado como justificativa pela polícia para entrar numa casa sem mandado. Um jovem relatou que andava de bicicleta quando foi abordado por policiais que procuravam drogas. Encontraram só um guardanapo, mas alegaram que era para consumo de maconha e foram até a casa da tia do jovem, a metros dali.
Não tinha droga comigo. Mostrei documento, expliquei, mas a polícia quis revistar a casa da minha tia e foi entrando sem nem ter mandado. A sorte é que minha irmã apareceu para filmar os policiais e perguntou se tinham mandado. Só depois disso a polícia se afastou. Mas eles continuaram humilhando, jogando documento no chão.
Jonas, morador de uma comunidade de Fortaleza
'Acharam que meus filhos eram bandidos'
Maria, mulher negra e moradora de uma comunidade carioca, relata que a polícia a abordou durante buscas em sua rua:
Aquele monte de policial armado perguntou com quem eu estava, quem estava dentro da minha casa, o que tinha lá. Respondi que estava com meus filhos. Eles falavam meio agressivamente, achavam que meus filhos já eram homens grandes, bandidos, traficantes. Peguei meus filhos e mostrei que eram crianças. Os policiais continuaram na casa procurando e não acharam nada.
Maria, moradora de uma comunidade do Rio de Janeiro
'Só revistaram meus amigos negros'
Uma moradora de uma comunidade na Bahia disse que recebia amigos em casa quando a polícia entrou.
Quatro policiais pararam e pediram para entrar. Autorizei, porque eu não estava devendo nada, e começaram a caçar droga na casa. Revistaram a bolsa das meninas, botaram o pessoal em fila com a mão na cabeça. Revistaram meus amigos negros, os brancos não foram revistados em nenhum momento. E meus amigos brancos tinham maconha no bolso para uso próprio. Como os policiais não acharam nada, só levaram os desodorantes das meninas, duas caixas de cerveja e foram embora.
Lua, moradora de uma comunidade na Bahia
Casas de negros sofrem mais buscas sem mandado
Pessoas negras foram alvo de 41,1% das buscas em domicílio não autorizadas; brancos, 22,4%, mostra pesquisa do Ipea. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada analisou dados a partir de processos dos tribunais da Justiça estadual brasileira.
A proporção de réus processados por tráfico é semelhante — 46,2% eram negros, e 21,2%, brancos. Sem um mandado, o agente só pode entrar numa casa com o consentimento do morador, em caso de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro.
Foram analisados casos em primeira instância de 5.151 réus, de um universo de 41,1 mil réus. A pesquisa, divulgada em janeiro, foi feita em capitais com mais buscas policiais domiciliares por região: Rio, Brasília, Fortaleza, Manaus e Curitiba. Os dados são do primeiro semestre de 2019.
Motivação das buscas
Polícia diz que patrulhamento e denúncias, anônimas ou não, motivam as buscas, na maioria dos casos. Em patrulhamento, os agentes alegam comportamento suspeito para abordagem.
Nos processos, há policiais falando coisas genéricas, como 'estávamos fazendo patrulha e fomos até a casa', 'tivemos a permissão', 'sentimos o cheiro', ou alegando denúncia anônima. Infelizmente, fica essa lacuna.
Rafael de Deus Garcia, doutor em direito e responsável pela pesquisa
'Toda uma comunidade é colocada como suspeita'
O tipo de abordagem que se faz prioritariamente com jovens negros de periferias é totalmente diferente do realizado em bairros com pessoas majoritariamente brancas. Será que no meu bairro seria tolerável o que acontece nas favelas? Eu seria favorável ao tipo de constrangimento pelo qual essas pessoas passam?
Daniel Hirata, pesquisador do Núcleo Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ
Ninguém entra sem mandado em Copacabana. Há um ordenamento jurídico condicionando a entrada da polícia às casas de pessoas mais pobres e negras. Não se cumpre o aspecto da igualdade de todos perante a lei. Dessa forma, toda uma comunidade é colocada como suspeita. Suas casas são postas como um lugar de consentimento do crime.
João Luís, da ONG Rio de Paz
Como está o placar da descriminalização no STF
O julgamento começou em 2015, foi retomado em 6 de março e está com placar de 5 a 3. Contudo, houve um novo pedido pedido de vista do ministro Dias Toffoli. Também não votaram: Luiz Fux e Cármen Lúcia.
- Ministros favoráveis à descriminalização: Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber (aposentada).
- Ministros contrários: Cristiano Zanin, André Mendonça e Nunes Marques.
Os magistrados favoráveis à descriminalização argumentam que a atual Lei das Drogas provoca estigmatização de pessoas da periferia e escancara o racismo das autoridades policiais e judiciais.
[A Lei das Drogas] produz um impacto discriminatório que é perceptível a olho nu e destacado por todas as pessoas que lidam com o problema: os jovens de classe média para cima, moradores dos bairros mais abonados, como regra, são enquadrados como usuários; os jovens mais pobres e vulneráveis, que são alvo preferencial das forças de segurança pública, são enquadrados como traficantes.
Luís Roberto Barroso
É possível constatar que os jovens, em especial os negros (pretos e pardos), analfabetos são considerados traficantes com quantidades bem menores de drogas (maconha ou cocaína) do que os maiores de 30 anos, brancos e portadores de curso superior.
Alexandre de Moraes