'Reagiu? Saco': PM exalta crimes nas redes e debocha até de punição
Manuela Rached Pereira
Do UOL, em São Paulo
24/06/2024 04h00Atualizada em 24/06/2024 10h28
"Você sabe qual é a função da PM?", pergunta o subtenente reformado da Polícia Militar de São Paulo Nilson Castro da Silva. "Não é policiamento preventivo, ostensivo, fardado, porra nenhuma. Isso aí é o que tá no papel. A função da PM é atrasar o lado de vagabundo. (...) Ele reagiu? Saco. Manda para o inferno."
"Sargento Castro", que usa nas redes sociais sua antiga patente, é um dos muitos policiais que viralizam com vídeos que enaltecem ações violentas da polícia. Em menos de um ano, ganhou 160 mil seguidores no TikTok e, em fevereiro, criou o seu próprio podcast, hoje com mais de 170 mil inscritos.
Apesar de confessar crimes e violar uma norma da PM que proíbe a divulgação de conteúdos não oficiais relacionados à corporação em mídias sociais, essa leva de policiais dificilmente é punida, enquanto é exaltada por seus seguidores. "Ícone", "esse foi polícia de verdade", "sargento, sou seu fã", dizem alguns comentários em publicações de Castro.
A reportagem ouviu especialistas em segurança pública para entender por que há tanto espaço para falas violentas e a exposição de ações ilegais na internet.
A primeira resposta é: faltam aplicações mais firmes das normas na corporação para punir esse tipo de comportamento, associado ao crescimento das redes sociais. Além disso, esse tipo de policial é tratado como uma minoria de "fanfarrões", mas que respondem aos anseios punitivistas de parte da sociedade.
'Apanha todo mundo'
Ao podcast Snider Cast, com mais de 1,6 milhão de inscritos, Castro conta que é torcedor do Santos e, enquanto sargento da Rocam (Rondas Ostensivas Com Apoio de Motocicleta), jogou bomba "à vontade" na direção da torcida corintiana durante um clássico do futebol paulista.
Em outra gravação, descreve o dia em que encontrou um grupo de pessoas que teria assistido a um "racha", interceptado pela polícia momentos antes, na zona leste da capital paulista.
Na hora em que chegamos ao banheiro [de um posto de gasolina da região] tinha uns 20 escondidos lá dentro. Falei: 'Ninguém sai (...) pega os cassetetes'. Entramos e era girocóptero de cassetetes, [emite sons de pauladas], arregaçamos, cara. E comigo não tem negócio de homem, mulher. Apanha todo mundo.
Castro, que na mesma entrevista assume já ter disputado "racha" em via pública
Em outro vídeo divulgado no TikTok, ele conta que foi autorizado por um tenente da PM a circular com sua moto pessoal sem placa.
Eu não ando com placa. Primeiro, eu tenho de me preocupar com ladrão, porque se o ladrão me catar ele vai me matar. Se eu tiver com placa, eu também tenho de me preocupar com radar, com CET, PM, GCM...
Nos comentários da publicação, alguns questionam: "Está na Constituição que polícia pode andar sem placa?", "então ele está acima da lei?".
Estão acima da lei?
O ouvidor das polícias de São Paulo, Cláudio Silva, diz que policiais como Castro ganharam notoriedade por falta de regras mais efetivas dentro das corporações.
Não tenho dúvida de que grande parte da polícia é de pessoas vocacionadas e que, quando buscam as fileiras da corporação, pretendem servir e proteger as pessoas. Mas, embora sejam minoria, esses policiais que enaltecem e incentivam a violência acabam ganhando força por não haver regras e aplicações tão duras que façam com que eles realmente reflitam sobre a consequência dos atos deles.
Cláudio Silva
O que existe hoje é apenas a diretriz PM3-006, de 2021, da Polícia Militar paulista, que proíbe a divulgação em mídias digitais de conteúdos relacionados à corporação por policiais da ativa e reformados.
O texto diz que o descumprimento das regras, "bem como de quaisquer valores e deveres policial-militares previstos em lei, deverá ser apurado à luz do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, Código Penal e Código Penal Militar, conforme o caso".
Quando cometem crime comum (como agressões ou andar sem placa, por exemplo), os policiais devem responder à Justiça comum (não militar).
No caso do abuso de autoridade, segundo a Lei 13.869/2019, as responsabilizações podem acarretar em:
- Inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de um a cinco anos;
- perda do cargo, do mandato ou da função pública;
- prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;
- detenção com pena de até quatro anos.
A SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública) limitou-se a dizer que Castro e mais dois PMs são "alvo de apuração". São eles o sargento Fernando Matei e Israel Nantes Santos, da Rota, conhecido como sargento Nantes.
Além de falarem publicamente sobre operações policiais, frequentemente pelo viés da violência, os sargentos da ativa exibem farda e armamentos nas redes sociais, o que também viola a diretriz de 2021 da PM-SP.
Outra violação da norma, que proíbe a publicação de manifestações de "cunho político partidário", é praticada por Nantes, que divulga postagens com críticas a gestões e políticos de esquerda desde a época em que se candidatou a deputado federal pelo PP, em 2022.
Cúpula legitima ações ilegais
Para Rafael Alcadipani, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor de estudos organizacionais da FGV, a punição aos casos apresentados "é incomum", com processos demorados e penas brandas, e "fica muito ao interesse do comando e da instituição aquilo que vai ser feito ou não".
"Há uma leniência nas instituições policiais, com um agravante que hoje temos um secretário de Segurança Pública que vem desse meio", ressalta.
Ele refere-se a Guilherme Derrite, atual chefe da SSP e ex-oficial da Rota, que aparece em vídeos antigos exibindo armamentos e relatando casos de operações policiais letais.
Há muitas postagens bastante polêmicas e pouco auspiciosas para a PM. Então, temos uma ambiguidade colocada: o chefe da SSP-SP é alguém que passa uma mensagem de que está tudo certo, que tem comportamento que legitima a quebra de hierarquia e disciplina.
"Sargento Castro" contou durante um programa do Snider Cast, em meio a risos do apresentador, que foi condenado a dois dias de prisão administrativa por seu comportamento.
"Mesmo eu estando reformado, teve um processo aí, um negócio de administração [...], que o Ministério Público do Rio de Janeiro fez uma denúncia sobre um negócio de podcast [...], correu o processo normal e, conclusão: dois dias de cana (risos). [...] Dois dias que eu vou ter pra ficar tranquilo lá, ninguém vai me encher o saco, vou ficar de boa lá", disse em tom descontraído.
'Fanfarrões' recebem apoio popular
Alcadipani avalia ainda que policiais que se "vangloriam" por ações violentas e ilegais são uma minoria que prejudica a reputação da instituição militar. Fazem isso para "impressionar o público", diz ele, desconsiderando a imagem de uma polícia profissional, "que é o trabalho policial na prática".
Os policiais sérios que eu conheço, mesmo os que são envolvidos, às vezes, em casos de violência ou letalidade, não falam nada para ninguém, ficam quietos. É muito mais daqueles que na linguagem policial são chamados de fanfarrões do que de policiais sérios, que não ficam se vangloriando de ocorrência em que tiveram de utilizar força ou força letal.
Rafael Alcadipani
A repercussão positiva dessas publicações evidencia também uma demanda de parte da sociedade, que vê na violência uma resposta eficaz à criminalidade.
"Não tenho dúvida de que parte da sociedade legitima esse tipo de comportamento", afirma o ouvidor das polícias. "Mas a gente está há 40 anos falando que bandido bom é bandido morto, praticando isso, e as pessoas estão cada vez mais inseguras. Fica claro que não estamos dando uma resposta efetiva nem para o crime ou para a segurança das pessoas."
Alcadipani concorda: "Parte da população que está cansada do crime, com razão, quer soluções rápidas e fáceis. Essas figuras oferecem isso, mas que a gente vê que nunca dá certo. Se matar resolvesse, o Brasil seria o país mais seguro do mundo".
Além disso, explica o professor da FGV, a projeção pelas redes sociais é uma estratégia usada por muitos agentes de segurança pública para tentar se eleger a cargos públicos. "E quanto mais escabroso e absurdo for o que eles falam, maior vai ser a atenção e o número de seguidores que vão ter. Então, infelizmente, a gente tem isso na polícia: essa imagem caricatural do policial para o sujeito conseguir um cargo eletivo."
Risco à imagem
A Defenda PM (Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar), formada por cerca de 2.000 oficiais, disse em nota que defende que "os princípios e filtros da verdade, o devido processo legal e o direito à ampla defesa" devem ser observados para que as publicações de policiais "não resultem em difamações, calúnias, injúrias, na destruição de reputações e exposição ao ridículo dos operadores de segurança pública".
Sem citar nomes, a entidade citou o risco de "enfraquecimento da imagem da própria instituição" e da "segurança do próprio policial e de seu local de trabalho".
Já a SSP-SP diz que "toda e qualquer denúncia de uso inadequado das redes ou descumprimento desses regramentos [Diretriz PM3-006/2021 e Lei Orgânica da Polícia Civil] são apurados com base no regulamento disciplinar das respectivas instituições e nos códigos Penal, Processual Penal e Código Penal Militar, conforme cada caso".
Sobre as declarações de Derrite, a pasta informou que os episódios ocorreram antes da publicação da diretriz que regula o uso das mídias sociais por integrantes da PM.
A reportagem tentou contato com os agentes Nilson Castro, Fernando Matei e Israel Nantes Santos via email e redes sociais, mas não teve retorno até o momento da publicação. O espaço segue aberto para manifestação.