'Uso pod até no banheiro': jovens relatam dependência em cigarro eletrônico
"Vou ao banheiro e levo o pod, ele já está atrelado a tudo" e "é uma coisa que eu preciso sentir perto de mim" foram frases ditas por jovens que relatam ser dependentes de cigarro eletrônico, já utilizado por aproximadamente 3% da população brasileira, segundo dados do Ministério da Saúde.
'É um vício de que não consegui me livrar'
"Devo ter gastado mais de R$ 5.000 em pods". O relato é da estudante de psicologia Paula Gomes, 19, que compartilha no TikTok suas tentativas de parar de fumar o cigarro eletrônico. Ela usa "pods" desde os 16 anos, quando começou a fumar uma unidade de mil puffs (tragadas). Hoje, a jovem consome dois cigarros eletrônicos de 8.000 tragadas por mês.
A estudante relata ter começado a fumar pelo "gosto bom" e "doce" do cigarro eletrônico. Paula já tentou parar de fumar diversas vezes, conta, mas o máximo que conseguiu foram 24 horas sem usar. Em um vídeo recente, a jovem relatou que dorme com o cigarro eletrônico ao lado da cama: "É uma coisa que eu preciso sentir perto de mim. Se tiver longe, me dá um pouco de agonia".
@.pauleteeh como é a rotina de uma viciada em pod. #pod #vape #viciada #vicio #cigarro ? som original - paula gomes
Parte dos fumantes optou pela troca do cigarro tradicional pelo eletrônico. É o caso do auxiliar administrativo Zyon Inaba, 25, que também teve acesso ao narguilé, ainda na adolescência, e fumava cigarros tradicionais até conhecer os "pods". Atualmente, o gasto dele com os itens é de cerca de R$ 400 mensais. Ele consome um cigarro eletrônico de 8.000 puffs por semana.
É muita dependência, a ponto de falar: 'nossa, estou vendo TV e fumo um pod'. Os rituais de antes de dormir, meu momento de relaxar, são mexer no celular e fumar um pod. Vou ao banheiro e levo o pod. Estou na festa, eu bebo e já pego o pod. Ele está em todos os momentos. Para mim, o cigarro estava atrelado a quando eu bebia, que era só final de semana e na faculdade. Já o pod está atrelado a tudo.
Zyon Inaba, auxiliar administrativo
Muitos jovens sequer têm conhecimento da nocividade dos cigarros eletrônicos, diz especialista em tabagismo. "[Em uma pesquisa que fizemos] também foi notado uma falta de conhecimento entre os mais jovens sobre os riscos de dependência e sobre as regras de uso e consumo em ambientes fechados, conforme a Lei Antifumo", comenta a cardiologista Jaqueline Scholz.
A cardiologista do InCor alerta para os possíveis danos à saúde dos usuários de cigarros eletrônicos. A amplitude dos riscos é potencializada, com chance duas vezes maior de ter um infarto ou um AVC (Acidente Vascular Cerebral). Se o usuário faz uso dos dois tipos de cigarro [eletrônico e convencional], o risco é quadruplicado.
O UOL apurou que cigarros eletrônicos são vendidos pela internet, em portas de baladas e bares por valores entre R$ 30 e R$ 350. O preço varia de acordo com a quantidade de tragadas, e os produtos — que existem em diversos modelos, inclusive recarregáveis, e cores — podem ser facilmente comprados por qualquer pessoa — de qualquer idade. Os "juices" — líquido que se vaporiza com o vape — são vendidos com "sabores" atrativos que vão desde morango e torta de limão até churros.
A gente sabe que existem compostos [no pods] que fazem muito mal à saúde. Mas mesmo que não tivesse, mesmo que inventassem uma nicotina que não faz mal à respiração, do ponto de vista psicológico, ficar dependente é uma doença, e é uma coisa ruim e grave.
Fred Fernandes, pneumologista
O consumo de pods fez tão mal à estudante de direito Vitoria Pessoa que ela adquiriu manchas no pulmão aos 22 anos. Ao UOL, a jovem, que mora em Porto Velho (RO), contou que começou com cigarros eletrônicos descartáveis, com 1.500 tragadas, e depois "foi ladeira abaixo". Apesar das reclamações da mãe após notar que ela sentia cansaço e falta de ar, a estudante disse que "nunca achava [que os sintomas] eram por causa do pod porque eu nunca vi ninguém com problema [em razão do consumo dele]."
Eu era viciada em pod. Dormia com o pod ao meu lado, acordava para ir ao banheiro à noite, dava uma puxada, aí eu ia dormir. Quando eu acordava, a primeira coisa que eu fazia não era tomar banho, não era escovar os dentes, era sempre fumar. Sempre tava comigo para qualquer lugar que eu fosse, se eu fosse ao banheiro, o pod ia comigo, se eu fosse comprar alguma coisa, ele ia comigo. Eu nunca saía sem o pod do meu lado.
Vitória Passos, estudante de direito
A estudante decidiu parar de fumar após fazer uma tomografia. Há três meses, ela jogou os pods fora, começou um tratamento com adesivo de nicotina e não sentiu mais vontade de consumir o cigarro eletrônico.
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Quero receberEu comecei a consumir em festa. Fumava um pouco, na outra festa mais um pouco e foi nessa que eu me viciei. É uma coisa que não tem como controlar porque a gente fala: 'ah, eu não vou me viciar, mas de tanto usar, vicia. Hoje eu vejo os males que me trouxe. A melhor coisa que fiz foi ter parado. Se eu pudesse voltar, eu jamais teria começado. A gente começa a usar por 'modinha', por influências, é uma coisa que só prejudica a gente.
Vitória Passos, estudante
Proibição no Brasil
Chamados de DEFs (Dispositivos Eletrônicos para Fumar), os cigarros eletrônicos são proibidos desde 2009 no Brasil. Contudo, o PL (Projeto de Lei) 5008/2023 prevê regulamentar os produtos, definindo exigências para a indústria.
O texto indica multa e detenção para quem vender os DEFs para menores de 18 anos. Além disso, a indústria seria obrigada a ter registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), cadastro na Receita Federal e no Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial).
A autora do PL, senadora Soraya Thronicke (Podemos), argumentou que os cigarros eletrônicos já são vendidos sem nenhuma regra sanitária. Além disso, a parlamentar expõe que o Estado não consegue arrecadar impostos com os produtos contrabandeados — o que não aconteceria com o produto legal.
A Abifumo (Associação Brasileira da Indústria do Fumo) defende que seja suspensa a proibição do cigarro eletrônico no Brasil. O objetivo, de acordo com a entidade, seria estabelecer parâmetros para a comercialização. (Veja nota abaixo)
Especialistas demonstram preocupação
Em meio a uma possível regularização destes aparelhos, especialistas apontam problemas relacionados à dependência em cigarro eletrônico. Para instituições, o dinheiro arrecadado com impostos não daria conta de sanar os danos futuros, provocados pelos DEFs na saúde pública do Brasil.
Em agosto, mais de 80 entidades médicas brasileiras emitiram nota repudiando a possível legalização dos cigarros eletrônicos.
O país vai enfrentar um grande problema de saúde pública por conta dos vapes em pouco tempo, alerta pneumologista. Fred Fernandes, integrante do conselho da SPPT (Sociedade Paulista de Pneumologia), avalia que argumentar que o dinheiro arrecadado poderia ser usado na saúde pública "é completamente obtuso". "É como pedir dinheiro para um agiota, você vai pagar uma conta muito maior em pouco tempo lá na frente", comenta.
"Deve se tornar um grande problema, talvez mais rápido do que o cigarro". Fernandes explica que, ao contrário dos cigarros tradicionais, os pods, vapes e semelhantes têm um grande apelo estético ao público jovem.
Cigarro eletrônico pode ser mais mais nocivo que o tradicional. Um usuário de cigarro eletrônico carrega em seu organismo de 3 a 6 vezes mais substâncias nocivas do que um usuário de cigarro comum, segundo pesquisa do InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP). De acordo com Jaqueline Scholz, diretora do Núcleo de Tabagismo do InCor e coordenadora da pesquisa, "o estudo indica que a intoxicação por nicotina em quem usa o cigarro eletrônico é tão alta quanto, ou até pior, que nos usuários de cigarro tradicional".
Não tenho a menor dúvida de que o cigarro eletrônico, se não for trabalhada a questão do uso, vai se tornar um problema de saúde pública tão importante nesse século como foi o cigarro no século passado. A gente viu a explosão do câncer de pulmão, que era uma doença rara e se tornou o câncer que mais mata. Já existem dados de que dentro da fumaça do cigarro eletrônico existem muitas substâncias tóxicas, além da nicotina, que é usada para viciar.
Fred Fernandes, pneumologista
A nicotina presente nos vapes, principalmente nesses de geração recente, é o sal de nicotina, que tem um potencial viciante maior. Ele consegue penetrar no pulmão e na circulação de forma mais rápida. Chega ao sistema nervoso central mais rápido, ativando o prazer da dopamina, que leva o indivíduo ao vício.
Fred Fernandes, pneumologista
Outro lado
A Abifumo informou ao UOL que as empresas produtoras de cigarro no Brasil não produzem cigarros eletrônicos. Contudo, a associação não nega o interesse de empresas em explorar a atividade comercial — caso seja regulamentada.
Para a associação, o alto número de dependentes e o "descontrole" da situação se dá pela ausência de uma regulamentação. Ainda segundo a nota, a entidade diz "compartilhar das preocupações da comunidade médica", e que defende a criação de regras para adultos fumantes de cigarros eletrônicos. (Veja nota completa abaixo).
A Abifumo informa que as empresas produtoras de cigarros no Brasil não comercializam cigarros eletrônicos no país, onde 100% dos produtos são ilegais. Observa-se que a falta de regras levou a uma situação de descontrole, na qual 2,9 milhões de adultos consomem produtos sem qualquer parâmetro e controle sanitário (IPEC 2023).
De acordo com o IBGE, 22,7% dos adolescentes brasileiros já experimentaram esses produtos. Cigarros eletrônicos são regulamentados em mais de 80 países, com medidas específicas para prevenir o consumo por menores de idade. Nos EUA, por exemplo, o consumo entre jovens caiu de 27,5% para 7,7% depois da regulamentação, de acordo com o FDA [agência regulatória].
A Abifumo compartilha das preocupações da comunidade médica em relação ao atual cenário desses produtos no Brasil e defende a criação de regras para que os adultos fumantes brasileiros tenham acesso a produtos que hoje não estão disponíveis no país: produtos controlados por autoridades sanitárias, exclusivos para maiores de 18 anos e com o fim, cientificamente comprovado, de redução de riscos no consumo da nicotina.
Nota da Abifumo
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