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'Só pedia misericórdia', diz mãe agredida em velório de filho em Bauru (SP)

Do UOL, em São Paulo

24/10/2024 05h30

A auxiliar de cozinha Nilceia Alves, 43, teve menos de 30 minutos para velar o corpo do filho Guilherme Oliveira, 18, na última sexta-feira (18). Pouco após o início do velório, no Cemitério Cristo Rei, em Bauru (SP), agentes da Polícia Militar entraram no local e agrediram Nilceia e o seu filho mais velho. Vídeos gravados por parentes mostram que as agressões ocorreram ao lado do caixão.

"Foram horas de sofrimento"

Após sequência de agressões, família deixou o velório. O irmão e também auxiliar de cozinha Fabio Nascimento, 27, foi levado pelos policiais em uma viatura. Nilceia Alves contou ao UOL que se desesperou ao ver a cena e tentou impedir que os PMs prendessem o filho. "Socaram a cara dele, eu me agarrei com ele, aí um outro policial me jogou contra uma pilastra e eu caí no chão. Eles foram agredindo com cassetete outras pessoas estavam no local. Eu só pedia que eles tivessem misericórdia naquele momento porque eu estava enterrando o meu outro filho", relatou.

Vídeo mostra que ao menos cinco PMs entraram no velório. Nas imagens, é possível ver que os agentes tentaram render Fabio, que estava com a mãe ao lado do caixão. Segundo a família, a confusão teve início porque uma viatura da PM parou em frente ao cemitério assim que o corpo de Guilherme chegou ao local. "Um policial começou a dar risada, falando que o sistema tinha vencido. Aí, as pessoas se revoltaram e começaram a bater boca. E eles ameaçaram invadir o local, e fizeram", disse Nilceia.

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O auxiliar de cozinha Fabio Nascimento, irmão de Guilherme, foi agredido por PMs durante o velório Imagem: Cedido ao UOL

Nilceia deixou o cemitério e passou a procurar por Fabio em diversos locais. A auxiliar de cozinha foi, inicialmente, à Unidade de Pronto Atendimento e à delegacia da cidade, sem sucesso. Ela só conseguiu achar Fabio no pronto-socorro do Hospital Central. Ele estava preso, mas por causa das agressões, precisou ser atendido. Em seguida, foi encaminhado para a delegacia. As duas horas previstas para o fim do velório de Guilherme estavam quase se encerrando. "Eu pedi para os policiais que soltassem o meu filho para ele ter o último momento com o irmão dele. Falaram para eu ir embora porque ele não seria liberado", lamentou.

Foram menos de 30 minutos para velar o corpo do filho. Segundo a polícia, Guilherme foi morto confronto com a PM, versão desmentida pela família. A mãe voltou ao cemitério de carona no carro de uma amiga e precisou conversar com a administração para poder ter um tempo ao lado do caixão, que estava prestes a ser levado ao local do sepultamento. "Fui lá conversar com a moça da secretaria e falei 'moça, pelo amor de Deus' e ela falou 'tudo bem, pode ficar só mais meia hora'. Aí eu voltei e fiquei velando o meu filho".

Fabio e Nilceia registraram um boletim de ocorrência por abuso de autoridade. Mãe e filho foram ao IML (Instituto Médico Legal) e fizeram o exame de corpo de delito.

Eu só fui ter contato com o meu outro filho [Fabio] já era cerca de 19h daquela sexta. Ele foi liberado da delegacia e até hoje continua arrasado por não ter participado do velório do irmão, ele não está aceitando. Ele não está conseguindo trabalhar porque ficou muito machucado, estamos protestando nas ruas por justiça, pela inocência do meu filho morto e por tudo que aconteceu no velório.
Nilceia Alves

Ele [o policial] falou 'você duvida que eu entro aí dentro e pego você?' E a gente não acreditou que ele iria fazer aquilo. Quando a gente se deparou, eles já estavam todos lá dentro. E eu só abracei o meu filho, porque como eu havia perdido o meu filho por causa da polícia, eu me amedrontei. Eu falei, 'eu não vou deixar tirar o meu filho daqui'. E eles xingavam e batiam, puxaram o meu cabelo, até que uma hora, um outro policial veio por trás de mim e me enforcou. Nessa hora, eu fiquei sem ar, aí eu soltei o meu filho e eles conseguiram levá-lo preso. Foram horas de sofrimento.
Nilceia Alves sobre o dia do velório

Ouvidoria pede apuração rigorosa

O ouvidor das polícias, Claudio Silva, pediu apuração rigorosa da Corregedoria da Polícia Militar. "Flagrante atos de violência contra os presentes, incluindo a mãe de um dos jovens ali velados. Imediatamente determinamos a abertura de procedimento para solicitar a Corregedoria da PM apuração rigorosa de todo o caso, desde a morte dos dois jovens até a injustificável cena verificada no velório", diz nota enviada ao UOL.

Presença hostil de policiais em velórios. "É importante registrar que, desde o episódio das operações na Baixada Santista, familiares das vítimas tem denunciado a presença hostil de policiais em velórios, em total desrespeito ao luto das famílias, que se sentem intimidadas pela ostensiva presença da PM nestas ocasiões. Percepção que merece atenção, atitude que não pode virar padrão", afirmou Claudio Silva.

Silva diz que acionou o comandante-geral da PM, Cássio Araújo de Freitas. "O crescimento da violência policial nas abordagens, sobretudo em comunidades pobres e desprotegidas, tem sido uma constante preocupação deste órgão e de tantos outros que defendem uma segurança pública eficiente e profissional. O instituto da legítima defesa desaparece, quando não se defende o sagrado direito de velar seus mortos e viver o luto com respeito e paz", afirmou.

Faltou sensibilidade dos policiais, diz pesquisador. Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explicou que ação poderia ter sido feito de outra forma. "Eu acho que faltou sensibilidade, existe a maneira correta de agir, seria possível esperar a pessoa sair dali, tentar fazer outro tipo de ação que não fosse uma ação que gerasse esse constrangimento e esse grau de violência em um momento tão delicado para a família. É claro que ninguém deve questionar a presença de uma viatura policial, isso não está correto, mas poderiam ter esperado o velório acabar para efetuar a prisão por desacato", avaliou.

Conduta dos PMs será investigada. A SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo declarou que as diligências prosseguem pela Polícia Civil em conjunto com a Polícia Militar, por meio de inquérito policial militar para apurar a conduta dos policiais envolvidos e adotar todas as medidas cabíveis.

Um dos agentes já foi afastado das atividades operacionais. "A PM não compactua com excessos e a conduta dos policiais não condiz com as práticas da instituição. Todo e qualquer desvio é rigorosamente investigado, com acompanhamento da Corregedoria, e os policiais punidos com rigor", segundo nota envaida pela SSP.

Mãe diz que filho morto pela PM era inocente

Familiares e amigos fizeram um protesto no bairro Jardim Vitória Imagem: Cedido ao UOL

Dois jovens foram mortos durante uma operação da PM no no Jardim Vitória, em Bauru, na quinta-feira (17). A Polícia Militar esclareceu que a dupla foi baleada em confronto. Eles foram identificados como Guilherme Alves Marques de Oliveira, 18, e Luis Silvestre da Silva Neto, 21. O UOL não conseguiu contato com familiares de Luis.

Armas e drogas teriam sido encontradas com eles. A SSP-SP informou ao UOL que PMs faziam uma operação na comunidade do Jardim Vitória "quando foram surpreendidos criminosos, que atiraram contra a equipe". Segundo a pasta, houve a intervenção e os suspeitos foram atingidos. O resgate foi acionado e constatou os óbitos no local. "Com eles, foram localizadas porções de entorpecentes, que foram apreendidas, assim como as armas que eles usavam", segundo resposta do governo paulista.

Intervenção policial. O caso foi registrado como morte decorrente de intervenção policial, tráfico de drogas, associação para o tráfico, localização/apreensão de objeto e tentativa de homicídio pela Delegacia Seccional de Bauru.

Nilceia diz que Guilherme não tinha envolvimento com o tráfico de drogas. A auxiliar lembra que o filho completou 18 anos no dia 27 de setembro e trabalhava com conserto de celular. "Não existe nada disso do que eles estão falando. O Guilherme era um menino de 1,40 m, pesando 40 kg. Nunca foi envolvido com coisa errada, nunca passou no Conselho Tutelar, nunca colocou uma mão em uma arma. O Guilherme não sabia descascar uma laranja", contou.

Mãe saiu de São Paulo para fugir da violência

Guilherme Oliveira havia completado 18 anos no dia 27 de setembro Imagem: Cedido ao UOL

A auxiliar de cozinha se mudou para Bauru há 12 anos. Ela, que é mãe de cinco filhos, sendo Guilherme o mais novo dos homens, imaginou que criá-los no interior de São Paulo fosse mais seguro do que permanecer na capital. "Sempre trabalhei, criei os meus filhos na igreja, saí de São Paulo porque eu queria que ele não passasse por isso, achei que a capital era perigosa. Vim para o interior para chegar aqui e a policia tirar a vida dele sem a menor piedade", lamentou Nilceia.

No dia da morte de Guilherme, a mãe lembra que chegou em casa do trabalho por volta das 16h. Ele estava em casa. Nilceia foi ao mercado e quando retornou, Guilherme havia saído. No início da noite, ela foi informada de que a polícia fazia uma operação na região e tiros teriam sido disparados. As lembranças do dia ainda estão vivas. Ela lembra com detalhes quando duas ambulâncias do Samu chegaram perto de uma região de mata, na rua de trás da sua casa. "Eles [a polícia] não deixavam ninguém se aproximar do local, só diziam que tinha um morto e um semimorto. Até então, eu não sabia que meu filho era um deles".

Sem conseguir encontrar Guilherme, a auxiliar de cozinha foi até uma UPA. "Meu filho não tinha voltado para casa, eu não sabia se ele estava escondido ou se tinha sido baleado, fui na UPA, mas os funcionários afirmaram que ninguém tinha sido levado do local dos tiros porque já estavam mortos. Só descobri quem era os dois baleados quando quando um advogada foi até a cena do crime, e os policiais deixaram ela passar".

Guilherme e Luis estavam próximos a um local de venda de drogas. Moradores contam que eles correram para o mato com a chegada da polícia.

Familiares e amigos têm feito diversos protestos desde a morte de Guilherme. "Eu estou brigando para provar a inocência do meu filho. Ele não estava com nenhum tipo de arma, muito menos com drogas. Quero descobrir o que fizeram com om eu filho, ele foi arrastado feito cachorro, tinha marcas de coronhada, bateram nele antes de executá-lo. Por que não o prenderam se ele era suspeito? Eu preciso de respostas", cobrou.

A auxiliar de cozinha Nilceia Alves Rodrigues e o filho Guilherme Imagem: Cedido ao UOL

Mãe e irmãos de Guilherme estão assustados. "A gente não está conseguindo dormir a noite, estamos assustados, amedrontados, para quem a gente vai pedir socorro? A gente mora na periferia não é por opção, somos trabalhadores honestos. Guilherme era um menino sonhador. A gente sempre foi uma família unida, hoje acordar e não ter o meu filho me dói muito. Nunca deixei nenhum deles ir para o lado errado".

Essa semana, Nilceia foi demitida do emprego. Ela trabalhava em uma marmitaria. "Me mandaram embora sem maiores explicações enquanto eu estava de luto. Só disseram que iriam dar baixa na minha carteira". Desde então, a mulher conta com o apoio financeiro dos filhos. "Era desse trabalho que eu trazia comida para dentro de casa", disse.

Ouvidoria das polícias diz que está "empenhada" em acompanhar o caso. "A Ouvidoria estará empenhada para que todos os acontecimentos deste caso, desde a abordagem seguida de morte dos jovens, os aspectos de socorro, a repressão a atos de protesto, até a aparente intimidação à manifestação dos familiares, sejam apurados com rigor e celeridade, inclusive sugerindo a avocação do caso para a capital. Se necessário, a Ouvidoria se deslocará até a cidade de Bauru para uma escuta qualificada dos envolvidos e busca de um diálogo frutífero com o comando local".

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