Ele perdeu 10 parentes e agora precisa pagar R$ 20 mil para renovar túmulo
Em menos de um ano, o aposentado Celso Vitor de Souza, 61, perdeu dez familiares, vítimas da Covid, durante a pandemia. Agora, cerca de quatro anos após as mortes da esposa, do filho e do irmão, ele alega que vem sendo cobrado a pagar R$ 20 mil para renovar a concessão de uso de um túmulo familiar no cemitério Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo. Segundo ele, desde a privatização dos serviços funerários na capital paulista, "criaram novas taxas" e "os abusos são constantes".
"Com essas cobranças, a família decidiu que todos seriam exumados e cremados para não deixar sobrar mais nada e evitar problemas no cemitério", conta Celso, que trabalhava como atendente de público e, hoje, tem como única fonte de renda um auxílio-acidente do governo federal.
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O que aconteceu
Familiar se refere a cobranças feitas a ele em 2024 por funcionários da Cortel SP, uma das quatro empresas que gerem 22 cemitérios municipais desde março do ano passado. No período, a Prefeitura de São Paulo, sob a gestão de Ricardo Nunes (MDB), deu início à concessão dos serviços funerários à iniciativa privada.
No início do ano, Celso voltou ao cemitério em busca de informações sobre a exumação do corpo do irmão. Ele foi o primeiro de seus familiares a morrer na pandemia, em junho de 2020. Por lei, os corpos sepultados em covas públicas precisam ser exumados após três anos para dar lugar a outros.
Com isso, os familiares precisam decidir se os restos mortais irão para um jazigo particular, se serão cremados ou encaminhados para o ossário geral, onde não há identificação.
Concessão de jazigo "vencida". "Quando pedi para fazerem a exumação do corpo do meu irmão, o cemitério exigiu que eu pagasse uma taxa de R$ 20 mil, alegando que a concessão do túmulo da minha família, onde ele estava enterrado, havia vencido", relata Celso.
Empresa informou que concessão do terreno onde está jazigo familiar de Celso expirou em maio de 2023. Procurada pelo UOL, a Cortel afirmou em nota: "Para fins de utilização da cessão, haja vista o término do prazo, o interessado teria que realizar a reconcessão por prazo indeterminado, conforme Decreto Municipal n° 59.196/2020, e realizar o pagamento do preço tabelado pela Prefeitura de São Paulo".
Cortel informou que preço do metro quadrado do terreno ocupado pelo túmulo no cemitério Vila Nova Cachoeirinha é R$ 3.664,58. Considerando a área total do jazigo, de 5,3 m², a concessionária diz que o valor totaliza R$ 19.385,62, conforme a política tarifária do edital de concessão dos serviços funerários da prefeitura.
Valor diferente é informado pela SP Regula. Segundo a agência reguladora municipal, responsável por fiscalizar a prestação dos serviços funerários desde as concessões, o preço regulamentado do metro quadrado de um terreno de jazigo no cemitério Nova Cachoeirinha é de R$ 2.697,98, "por prazo indeterminado".
"Não há previsão legal ou contratual que condicione o serviço [de exumação] à renovação de jazigos", de acordo com o órgão. A SP Regula, que é uma autarquia vinculada ao gabinete do prefeito, informou ainda que "as concessões de terrenos em cemitérios municipais foram padronizadas e não são mais permitidas as cessões por prazo de 5 ou 25 anos", conforme a Lei 17.180/2019.
Questionada, a agência não esclareceu se a cobrança de R$ 20 mil pela renovação do jazigo no caso de Celso foi irregular.
"Nada por escrito". Ao solicitar o contrato do túmulo de sua família e mais informações sobre a suposta concessão vencida, Celso foi informado no cemitério que deveria procurar o setor jurídico da Cortel. "Eu mandei os pedidos por e-mail, mas nunca me responderam". Ele diz ainda que as cobranças dos atendentes da empresa eram feitas apenas presencial e verbalmente. "Não me enviavam nada por escrito".
O aposentado então encaminhou um pedido de acesso à informação à SP Regula. No documento assinado por Celso em 12 de novembro, ao qual o UOL teve acesso, ele alega que a Cortel "não tem fornecido informações sobre as antigas concessões de uso do jazigo realizadas antes da privatização", e lista diversos questionamentos à agência reguladora.
Celso afirma que não teve retornos do órgão público. O prazo de resposta da SP Regula ao pedido é de até 20 dias, segundo a LAI (Lei de Acesso à Informação), mas Celso alega que ainda não teve resposta. Em nota, a SP Regula informou que "não foi encontrado registro de denúncia ou pedido de esclarecimento pelo munícipe nos canais oficiais da prefeitura".
Sem respostas e condições financeiras para pagar o valor exigido para a exumação, ele procurou a Defensoria Pública em busca de orientação. "A defensora me orientou a não pagar e exigir por escrito o porquê da cobrança", conta.
Quando a defensora entrou na jogada, não quiseram fornecer as informações por escrito e, alguns dias depois, disseram: 'A partir de agora está liberado, você pode exumar seu irmão'
Celso Vitor de Souza, em entrevista ao UOL
Cinzas no jardim e novas cobranças
O irmão de Celso foi exumado há alguns meses e, logo em seguida, cremado. "A minha cunhada se decepcionou tanto nesse processo que cremou o corpo dele e jogamos as cinzas no jardim da casa deles. Ela falou: 'vamos nos livrar dessas taxas', antes de decidirmos fazer o mesmo com nossos outros familiares".
Pouco depois, Celso voltou a ser cobrado pela exumação do corpo da esposa e do filho. A intenção dele, à época, era exumar os restos mortais deles, enterrados em outra cova pública no Vila Nova Cachoeirinha, para enterrá-los no jazigo da família. Ele conta que, então, foi novamente cobrado por funcionários da Cortel pelo pagamento de R$ 20 mil para a renovação do uso do terreno no cemitério.
Quando anunciou que voltaria a procurar a defensoria, o aposentado teria recebido uma nova proposta. "Disseram que, se não quisesse pagar os R$ 20 mil, eu teria outra opção. Ele [funcionário da Cortel] disse: 'Você pode pagar R$ 21 mil e nós te damos um túmulo com seis gavetas'. Aí eu perguntei: 'Mas e o túmulo da minha família?' E ele falou: 'Você assina uma doação dele para a gente'.
A Cortel nega a prática em suas agências. Em nota, a empresa "ressalta que em hipótese nenhuma solicita doações de jazigos a pessoas em troca de túmulos novos" nos cemitérios que administra.
Reportagem do UOL revelou que a privatização do serviço funerário na capital abriu brecha para a criação de mercado de revenda de jazigos de uso particular. A apuração mostra que túmulos considerados abandonados — alguns ocupados pelas mesmas famílias há mais de 150 anos — estão sendo revendidos por até R$ 150 mil no cemitério do Araçá, também administrado pela Cortel.
O que eu senti com essas cobranças foi muita raiva porque eu já havia passado por tanta coisa. (...) Parecia que a morte não era suficiente, eles tinham que nos humilhar
Celso Vitor de Souza
Ação na justiça e projeto de memorial
Celso afirma que irá entrar na Justiça contra a Cortel e a Prefeitura de São Paulo. Ele pretende provar que as cobranças da empresa são irregulares e que seus pedidos por informações e documentos aos quais tem direito foram negligenciados.
Entre os seus planos, está a construção de um "memorial tumular" de vítimas da pandemia. Ele conta que deseja enterrar no local o corpo da esposa e do filho, "como uma marca e um exemplo para lembrar das vidas perdidas e, hoje, esquecidas".
A história de trabalhadores como nós não deve ter registro e nós devemos passar como se nunca tivéssemos existido. (...) O que foi feito com os cemitérios não é uma coisa inocente, não é equívoco, não é ilusão, isso é muito claro para quem, como eu, frequenta os cemitérios. A privatização foi uma coisa planejada, estudada, tudo antecipado para gerar lucro. Celso Vitor de Souza
Ele afirma, por fim, que também solicitou aos funcionários da Cortel informações para tentar viabilizar a criação do memorial no Vila Nova Cachoeirinha. A empresa retornou após um pedido formalizado pela Defensoria, alegando que "não há terrenos disponíveis para atender a demanda", conforme informado pela própria concessionária à reportagem.
"Disseram que não teriam terreno para doar, mas que poderiam me vender o que eu precisasse", conta Celso. "Eu e a defensora até rimos", conclui.