Citados por Tarcísio, números mostram PM mais violenta, não mais eficaz
A SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública) divulgou dados sobre a redução no número de homicídios dolosos em comparação ao aumento significativo da letalidade policial no estado e especialistas alertam para uma falsa correlação entre os números. Procurada, a SSP disse não compactuar com o que chamou de 'desvios de conduta' de policiais.
O que aconteceu
Apesar da diminuição no número de homicídios e roubos, os crimes de latrocínio e estupro tiveram um aumento. Os números foram levantados pelo UOL com informações da transparência da SSP-SP.
O número de homicídios registrados em 2024, até então, reduziu de 2.127 em 2023 para 2.065 em 2024. Em contrapartida, aumentou o número de latrocínios, com 133 registrados no ano passado e 144 neste ano.
Os registros de estupro também aumentaram, segundo a SSP. Foram 12.319, frente aos 12.079 registrados no ano passado, representando um aumento pelo terceiro ano seguido, levando em consideração que no ano de 2022 foram registrados 11.140 estupros.
Casos de lesão corporal seguida de morte também aumentaram, passando de 84 ocorrências em 2022 para 103 em 2024. Tentativas de homicídio passaram de 2.873 casos em 2022, 2.952 em 2023 e 2.897 em 2024.
O governador Tarcísio de Freitas e o secretário Guilherme Derrite têm defendido ações da pasta, argumentando uma forte queda nos indicadores de mortes, por exemplo. Contudo, o clima de instabilidade e insegurança na Polícia Militar já afeta a gestão.
Entre os anos de 2022 e 2024, a letalidade policial em São Paulo registrou um salto. De acordo com os dados da SSP, as mortes em ações policiais aumentaram de 331 em 2022 para 676 em 2024, o que representa um crescimento de mais de 100%.
. Em um período de um mês, pelo menos quatro episódios envolvendo violência policial ganharam o noticiário nacional, ilustrando os dados apresentados pelo levantamento.
- 3 de novembro: Gabriel Renan da Silva Soares, um homem negro de 26 anos, foi alvejado com 12 tiros após furtar sabão em um mercado.
- 5 de novembro: o pequeno Ryan da Silva Andrade, de 4 anos, foi morto com um tiro durante um confronto policial em uma comunidade de Santos.
- 20 de novembro: o estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas, 22, foi morto com um tiro de um policial em um hotel na zona sul de São Paulo.
- 1º de dezembro: um policial foi flagrado jogando um homem de cima de uma ponte na periferia de São Paulo.
Associar a queda de homicídios ao aumento da letalidade policial seria uma falsa premissa, de acordo com especialistas. Para Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminalista e ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, a polícia tem matado mais, mas sido menos eficiente. Mariz narra que a segurança pública tem sido baseada muito mais na repressão a partir da violência, do que por meio de inteligência e atividades de estratégia. De acordo com o Instituto Sou da Paz, houve queda no número de homicídios solucionados, por exemplo, demonstrando a tendência os homicídios resolvidos representavam 47% em 2023, indo para 40% em 2024.
A PM está matando, está agredindo de forma injustificada, atirando a esmo, matando via bala perdida gente alheia ao crime. Eu entendo que a PM está vivendo um momento difícil de desvio de rota e missão para proteger. O que a gente tem de concreto é que a PMs, em seu grande contingente, estão agindo em absoluto desvio de suas funções, violenta e agressiva. Basta que um PM se sinta ameaçado para que agrida.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, criminalista e membro da Comissão Arns e ex-secretário de Segurança Pública
Queda no número de homicídios pode ser explicada por outros fatores. Para Daniel Hirata, que pesquisa segurança pública e é professor da Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF (Universidade Federal Fluminense), a queda no número de mortes gerais pode se explicar por "arranjos internos" dentro da criminalidade, evitando confrontos para privilegiar outras modalidades de crimes.
A falsa associação entre aumento da letalidade policial e redução da criminalidade é um equívoco. A diminuição dos índices criminais está mais relacionada a fatores internos do crime organizado do que à ação policial. A intensificação da violência, por sua vez, pode gerar efeitos perversos, como o fortalecimento do crime organizado e o aumento da corrupção policial. Desde 2017 houve uma acomodação de interesses no crime organizado e isso vem diminuindo os crimes.
Daniel Hirata, professor da Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF (Universidade Federal Fluminense)
A argumentação das autoridades denota uma circunstância falsa de argumentos para justificar a letalidade. A PM está matando e está agredindo de forma injustificada. O número (de homicídios) é uma cortina de fumaça para iludir a sociedade, e ela fica muito passível de ser convencida de que policia tem que agir com violência, e isso é um grande engano.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, criminalista e membro da Comissão Arns e ex-secretário de Segurança Pública
O aumento da letalidade policial, por outro lado, gera preocupações sobre o desvio de função da Polícia Militar, que, segundo Mariz de Oliveira, está agindo de forma indiscriminada, violenta e agressiva, em vez de focar na proteção da população. Hirata, que coordena um núcleo de estudos sobre novos ilegalismos, alerta para o risco de surgimento de milícias estimulado pela alta letalidade e a falta de responsabilização.
A história do Rio de Janeiro demonstra que o controle frouxo das forças policiais leva à proliferação de milícias e à intensificação da violência. A militarização da segurança pública, com o uso de táticas de guerra em operações policiais, viola os direitos humanos e gera um ciclo de violência. O uso indiscriminado da força e a desvalorização de protocolos de segurança contribuíram para o aumento da letalidade policial.
Daniel Hirata, professor da Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF (Universidade Federal Fluminense)
Policial é voz de comando, de acordo com a ideologia e filosofia, daqueles de que estão acima da tropa. Se você dá uma voz de comando agressiva, eles vão agredir, se você tem uma voz de proteção, eles terão disciplina. O secretário, o governador, o prefeito, devem estar atentos. Na campanha municipal, por exemplo, houve uma campanha em que os candidatos estavam focados em armar a Guarda Municipal. Todos esses discursos são perigosos.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, criminalista e membro da Comissão Arns e ex-secretário de Segurança Pública
Câmeras corporais
O uso de câmeras corporais nos policiais militares também pode contribuir para a queda nas mortes. De acordo com Nathalia Oliveira, socióloga e cofundadora da Iniciativa Negra, as câmeras foram essenciais para a redução, mas teme que os discursos minimizando a importância dos aparelhos influencie em ações policiais futuras.
Na segunda-feira (9) o ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), decidiu pela obrigatoriedade do uso das câmeras pelos agentes paulistas. Citando resultados com e sem o advento da tecnologia, Barroso ainda definiu que as câmeras devem funcionar de forma ininterrupta.
Anteriormente, a SSP contratou uma nova empresa para fornecimento dos aparelhos e explicou que as câmeras poderiam ser ligadas e desligadas pelos agentes. No entanto, após ação da Defensoria Pública de São Paulo junto ao STF, a Procuradoria Geral do Estado enviou documentos argumentando que as câmeras poderiam ser acionadas de forma remota e funcionariam automaticamente durante operações.
Embora a instalação de câmeras tenha reduzido o número de homicídios, a cultura da violência persiste na corporação. A impunidade e a falta de responsabilização por excessos policiais minam a confiança da população nas instituições de segurança pública.
Daniel Hirata, professor da Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF (Universidade Federal Fluminense)
Os policiais têm que ser afastados, investigados, indiciados, responder porque a gente entende que não são casos isolados. A gente precisa de uma responsabilidade de estado em relação a se comprometer que isso não continue sendo um tipo de procedimento da corporação. A gente precisa de celeridade nessas respostas. A gente vai precisar voltar algumas casas em relação a essa postura do estado.
Nathalia Oliveira, socióloga e cofundadora da Iniciativa Negra
Eu acho que a primeira coisa é parar de estimular a violência policial, todas as autoridades: governador, secretários, chefes. Todos eles deveriam pensar que o combate ao crime não se dá por meio de uma polícia agressiva e violenta. O combate se dá por meio de inteligência.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, criminalista e membro da Comissão Arns e ex-secretário de Segurança Pública
Outro lado
A SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) informou, em nota, que "não compactua com excessos ou desvios de conduta". A pasta argumentou, ainda, que nos dois primeiros anos da gestão Tarcísio houve redução de 32,2% em mortes por intervenção policial se comparado aos dois primeiros anos da gestão anterior. (Veja nota completa abaixo)
"A SSP se mantém atenta à variação dos indicadores criminais e tem concentrado esforços para combater todas as modalidades criminosas no estado, incluindo os casos de estupro, que muitas vezes ocorrem em uma dinâmica familiar que dificulta não só a prevenção por parte da polícia, mas a denúncia por parte da vítima.
Deste modo, a pasta tem desenvolvido campanhas para as vítimas denunciarem os agressores e ampliando os canais para comunicação deste tipo de crime, que funcionam 24h por dia. A atual gestão ampliou em mais de 80% as salas de Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) para atendimento por videoconferência em plantões policiais, contanto hoje com 143 unidades, além de outras 141 DDMs territoriais e a DDM Online para o registro de ocorrências e solicitação de medidas protetivas que pode ocorrer a partir de qualquer dispositivo conectado à internet. Há, ainda, o aplicativo SP Mulher Segura, que reúne as principais funcionalidades para facilitar o registro de ocorrências e o acionamento da Polícia Militar em um único lugar.
Quanto aos latrocínios, a pasta tem monitorado o indicador por meio do SP Vida para desenvolver políticas de enfrentamento, e também atuado em outra frente, que é o combate aos roubos - crime que dá início ao latrocínio. Neste caso, os assaltos tiveram redução de 14,9% em todo o estado, nos dez primeiros meses do ano. O número é o menor em 24 anos. Esse resultado foi obtido por meio do reforço no efetivo e investimentos para melhor equipar as polícias, aliando também tecnologia e inteligência às atividades policiais, o que permitiu, em igual período, aumentar em 26,7% a quantidade de armas ilegais retiradas das mãos de criminosos e prender/apreender cerca de 168 mil infratores".
Secretaria de Segurança Pública, em nota
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