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Médico terá de pagar R$ 500 mil: quem 'fiscaliza' fraude em cotas raciais?

e Giovanna Arruda

Colunista do UOL e colaboração para o UOL, em São Paulo

11/12/2024 05h30

Um médico foi condenado pelo TRF5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região) a pagar pela graduação realizada na Ufal (Universidade Federal de Alagoas). Segundo os desembargadores, Pedro Fellipe Pereira da Silva Rocha é branco e fraudou sua autodeclaração para acessar indevidamente a universidade por meio de cota racial.

O caso foi revelado pela coluna de Carlos Madeiro no UOL.

Mas como Rocha conseguiu ingressar no curso e concluir a graduação por meio de cotas sem ter sido barrado antes? Quem "fiscaliza" se há fraude em cotas? O ingresso em instituições federais por meio do sistema de cotas se dava, inicialmente, apenas por meio da autodeclaração do candidato. Com o tempo, a regra passou por aprimoramento para evitar fraudes do tipo.

Entenda a lei e a aplicação

A lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, foi sancionada em agosto de 2012 pela então presidente Dilma Rousseff. A lei estabeleceu uma reserva de vagas nas universidades para alunos de escolas públicas; estudantes pretos, pardos, indígenas, oriundos de famílias com renda inferior a um salário mínimo e meio per capita; e estudantes com deficiência.

Segundo o Ministério da Educação, a autodeclaração era o critério no sistema "original" de cotas raciais. Cada candidato declarava se era branco, pardo, preto ou indígena. "O critério da raça será autodeclaratório, como ocorre no censo demográfico e em toda política de afirmação no Brasil", indica o portal do MEC sobre a lei 12.711/2012.

No caso de Rocha, seu ingresso na Ufal aconteceu por este método. O médico se autodeclarou pardo ao concorrer a uma vaga na universidade.

Como o sistema vem sendo aprimorado

Para garantir a correta distribuição das cotas raciais, boa parte das instituições federais criou grupos especializados para avaliar essas candidaturas antes de o estudante entrar no curso ou durante o curso. Neste método, a identificação étnico-racial de um indivíduo é feita a partir da percepção social de outras pessoas, por meio das chamadas comissões de heteroidentificação.

As comissões podem ocorrer em momentos diferentes. A avaliação da "banca" pode ser feita no momento da matrícula ou durante os anos letivos, a partir de uma eventual denúncia contra um dos alunos. No caso de avaliações no momento da matrícula, os candidatos que, segundo o parecer da comissão, se não encaixam na cota para a qual se inscreveram são impedidos de ingressar no curso.

A USP, por exemplo, tem uma comissão de heteroidentificação que atua na política de cotas. Segundo o portal da universidade, a autodeclaração racial se mostrou "um processo inadequado, gerando insegurança entre os estudantes". A USP afirma que, ao longo dos anos em que aceitou a autodeclaração racial, recebeu "centenas de denúncias contra discentes [alunos]" que utilizavam o sistema de forma indevida.

Em decorrência da insegurança permanente e dos transtornos causados aos estudantes, e buscando impedir as fraudes às políticas afirmativas, a USP adotou, em 2023, as comissões de heteroidentificação. São grupos de pessoas (professores, alunos, servidores técnico-administrativos e membros da sociedade civil) que passam por processo de letramento racial e avaliam os traços fenotípicos dos candidatos que se autodeclaram negros.
Portal oficial da USP

No caso da USP, são realizadas duas avaliações de fotos do aluno que busca a vaga via cota racial, feitas por bancas independentes. Quando necessário, a universidade solicita uma espécie de entrevista com o candidato, presencial ou virtual. "No processo avaliativo, são envolvidas aproximadamente 70 pessoas, respeitando, nessas comissões, a diversidade étnico-racial e de gênero", declara a universidade.

No caso da Ufal, as bancas de heteroidentificação foram implementadas em 2018, segundo o portal da universidade. De acordo com a universidade, isso ocorreu para diminuir a possibilidade de fraudes nas vagas reservadas para pessoas pretas nos cursos de graduação e pós-graduação. Outras universidades federais, como a UFMG e a Unifesp, também implementaram comissões do tipo.

O que aconteceu

O médico ingressou na Ufal via PSS (Processo Seletivo Sisu/Ufal) e estudou na universidade entre 2017 e 2023. Rocha se candidatou na cota de autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independente de renda, tenham cursado o ensino médio em escolas públicas. No caso, o médico estudou em uma instituição filantrópica de Maceió.

Alunos da universidade denunciaram Rocha pelo uso das cotas raciais, mas a Ufal se recusou a cancelar a matrícula do universitário. Segundo Danilo Luiz Marques, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Ufal, em 2017 a instituição usava apenas a autodeclaração como critério de avaliação no sistema de cotas —a comissão de heteroidentificação foi criada depois.

A decisão do TRF5 contra Rocha foi tomada no último dia 5. A deliberação alterou a sentença em primeira instância da Justiça Federal de Alagoas, que havia negado a condenação solicitada pelo MPF (Ministério Público Federal), autor da ação.

O réu não possui nenhum traço apto a justificar sua participação como preto/pardo. Efetivamente, diante das fotografias acostadas à inicial, não seria possível negar o óbvio [...] Constata-se que PEDRO FELLIPE PEREIRA DA SILVA ROCHA não possui fenótipo de pessoas negras, a partir de uma análise quanto ao tom de pele, formato do nariz, e os cabelos.
Trecho da ação do MPF-AL

Rocha deverá ressarcir o Estado em R$ 7 mil para cada mês estudado na Ufal. O curso de medicina tem duração de seis anos, fazendo com que este montante some pouco mais de R$ 500 mil. Além disso, o médico terá de pagar uma indenização de R$ 50 mil por danos morais.

O que diz Rocha e sua defesa

Em depoimento em 2023, Rocha afirmou que tem ascendência negra. "Sempre fui criado e convivo com pessoas negras ou pardas", disse, citando a mãe, a avó e o pai. O médico também afirmou que já havia se declarado pardo em outros momentos e que já foi vítima de preconceito racial. "Eu já fui, sim, zoado na escola com relação a minha cor, [era] chamado de amarelo; principalmente quando era no ensino fundamental", relatou.

Paula Falcão, advogada do médico, afirmou que vai recorrer da decisão do TRF5 porque a mesma "viola preceitos constitucionais". "É importante esclarecer que o sistema de cotas raciais não se restringe exclusivamente aos pretos, mas também inclui os pardos, conforme a legislação vigente. O médico recém-formado, ao longo de sua vida, sempre se reconheceu como pardo, uma autodeclaração que reflete seu contexto histórico, cultural e social. A autoidentificação é um direito da personalidade, vinculado aos aspectos existenciais, emocionais e sociais de cada indivíduo", disse em nota.

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