Entre acordos e piadas, vendedores de cemitérios admitem fraude em vendas
Diferentes trocas de mensagens entre vendedores de empresas que administram os cemitérios municipais de São Paulo desde o início da privatização dos serviços funerários revelam fraudes e cobranças em desacordo com a lei a pessoas que buscam sepultar familiares por preços mais acessíveis na capital.
O que aconteceu
Prints mostram conversas entre funcionários que assumem irregularidades na venda de enterros. Os registros foram obtidos e disponibilizados à reportagem pelo Sindsep (Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo), que monitora os serviços funerários na capital desde o início da concessão pública, em março de 2023, às empresas Velar, Consulare, Cortel SP e Grupo Maya —hoje responsáveis pela gestão de 22 cemitérios municipais e 1 crematório.
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Troca de mensagens indica que gestor de uma das empresas usou como exemplo funcionária que vendeu um serviço mais barato, mas cobrou o valor de um mais caro. "A Dani* mostrou [ao familiar] a [categoria] social e vendeu a [categoria] padrão. Vamos nos atender [SIC] nessas possibilidades de vendas, agenciadores", escreveu o funcionário da Velar em um grupo de WhatsApp com vendedores da empresa.
Outra conversa mostra gerente da mesma concessionária dizendo que alterou imagem de caixão da categoria mais acessível por outra "mais feia" em catálogo de vendas. A intenção com a troca de fotos, segundo avaliação do Sindsep, era fazer com que a opção mais barata não fosse escolhida pelos familiares de pessoas falecidas.
'O céu é o limite'
Em outra interação, gestor da Velar pede que vendedores apliquem nos serviços preços maiores do que os tabelados pela prefeitura à época. Na mensagem, ele pede para que os funcionários ofertem todos os pacotes funerários da categoria "popular", mais barata, com o valor agregado de um "concierge", profissional que oferece atendimento personalizado às famílias. "Passem a colocar no mínimo esse valor [com concierge], (...) mas sabemos que o céu é o limite", ele escreve.
Valores comparados pela reportagem consideram preços tabelados pela prefeitura antes de decisão do STF que determinou a revisão dos preços. No dia 24 de novembro, o ministro Flávio Dino concedeu uma liminar determinando que os valores dos serviços funerários voltassem a ser os mesmos que os praticados antes da privatização, ajustados apenas pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo).
Taxas foram cobradas mesmo em casos de serviço gratuito. Ainda no grupo de funcionários da Velar, um deles orienta para a obrigatoriedade da cobrança pela higienização dos cadáveres, mesmo para familiares que, por lei, atendem aos requisitos sociais para acessar os serviços funerários de forma gratuita.
Velar informou que registros são do ano passado e, portanto, não têm ligação com "procedimentos vigentes na empresa". "A 'Tabela de Preços', assim como as trocas de mensagens, são do ano de 2023, não tendo nenhuma relação com a atual tabela tarifada da Prefeitura ou com os procedimentos vigentes na empresa", afirmou em nota.
Privatização permite serviços não tabelados pela prefeitura, alega a empresa. Sobre os serviços com preços mais altos orientados aos funcionários, a Velar afirma que "a concessão admite a prestação de serviços como a que é realizada por concierges" e que "acolhem solicitações que não estão limitadas ao pacote tarifado pela Prefeitura".
Velar informa ainda que "pacote de gratuidade não inclui alguns serviços". Por fim, a empresa afirma que "tem o compromisso de que todos os corpos sejam preparados em clínica para que tenham uma despedida digna, o que inclui os beneficiários de funeral gratuito" e que "os preços dos serviços funerários e cemiteriais tarifados obedecem à tabela estabelecida no contrato de Concessão". A concessionária não se manifestou sobre os prints que indicam práticas de fraude nas vendas.
'Tentar vender o máximo para sair da tabela da Prefeitura'
Empresa oferece comissão a funcionários por vendas maiores que R$ 10.000. A reportagem também teve acesso a uma tabela enviada a funcionários da Consolare que mostra uma política de incentivo, com "prêmios" e comissão, a atendentes que conseguirem vender mais itens e serviços nos pacotes funerários.
Gerente da empresa pede que funcionários vendam "o máximo possível para sair da tabela da prefeitura". "Precisamos forçar a venda do velório [da categoria] Salete", escreveu em seguida.
"Morte foi transformada em negócio", diz dirigente do Sindsep. "Com o processo de concessão, as agências funerárias se tornaram lojas que vendem produtos para a morte", afirma João Batista Gomes, secretário de assuntos jurídicos do sindicato.
O vendedor não está preocupado em atender a população, ele precisa vender, e isso é, a todo momento, incentivado por seus gerentes e coordenadores. (...) Chegaram a um nível de fazer piadinha com as vendas a pessoas em luto" João Batista, dirigente do Sindsep
O que diz a Prefeitura de São Paulo
Gestão municipal não se posicionou diretamente sobre práticas das empresas e enalteceu privatizações. Procurada pelo UOL com pedido de posicionamento sobre os registros obtidos pela reportagem, a Secretaria de Comunicação da Prefeitura afirmou, em nota, que a concessão dos serviços funerários "proporcionou avanços para a melhora da qualidade do atendimento à população, como valor 25% mais baixo no funeral social, garantia de enterros gratuitos para cerca de 7 mil famílias por ano, início da revitalização de áreas comuns dos cemitérios e aumento das agências funerárias de 13 para 42".
Prefeitura diz que "cabe às concessionárias cumprir o acordo assumido em contrato e garantir direitos e acesso a um serviço de qualidade à população". Nota enviada ao UOL afirma que "à Prefeitura de São Paulo compete a fiscalização e, mediante comprovação de desvios, medidas de correção são aplicadas". A gestão municipal informou ainda que "desde 2023, a SP Regula [agência reguladora dos serviços funerários] registrou 149 autos de infração e aplicou 38 multas".
*Nome alterado pela reportagem para preservar identidade da funcionária citada.