Topo

'Quase morri', diz paciente sobre falsa cura do câncer vendida por dentista

A paulista Maricil Duarte Moro, diagnosticada com câncer tipo HER 2 +, e o dentista Marco Botelho, que propaga a "cura do câncer" a pacientes e estudantes Imagem: Divulgação

Do UOL, em São Paulo

30/12/2024 05h30Atualizada em 30/12/2024 08h52

Uma das ex-pacientes do dentista Marco Botelho, que chegou a ser preso em fevereiro por exercício ilegal da medicina, afirma que poderia ter morrido se seguisse com os supostos tratamentos médicos indicados pelo profissional, que vende a seus pacientes a "cura do câncer".

O que aconteceu

A paulista Maricil Duarte Moro, 37, foi diagnosticada com câncer de mama em estágio avançado em 2020. Ela iniciou tratamentos convencionais com quimioterapia e bloqueio hormonal, mas conta que, nos anos seguintes, se frustrou com o avanço gradual da doença e com o atendimento médico que vinha recebendo.

Relacionadas

No início de 2023, ela descobriu na internet supostos tratamentos alternativos para a "cura do câncer" divulgados por Botelho. Conhecida como Mari Moro, a paciente diz que seu primeiro contato com o dentista foi por uma live no Instagram, rede na qual ele é seguido por mais de 55 mil pessoas.

Entrei na live e ele começou a explicar, daquele jeito dele que parece uma lavagem cerebral, que a cura para o câncer existe, que a doença é causada por falta de hormônios e coisas assim. (...) No início, desconfiei, mas fiquei curiosa e fui procurar saber mais. Maricil Duarte Moro, em entrevista ao UOL

A paciente diz que procurou ajuda de Botelho e foi instruída a interromper a quimioterapia e iniciar tratamento com reposição hormonal. "Ele disse para eu parar com tudo, começar o tratamento hormonal e fazer uma dieta a base de carnes e ovos. (...) Me indicou uma médica que me receitou os cremes hormonais e gastei cerca de R$ 3.000 só na primeira compra, com a ajuda de uma vaquinha que fiz para comprar".

Como era uma época em que eu sentia muita dor e estava desesperançosa com o meu antigo médico, comecei a passar os cremes hormonais no corpo. No início, aquilo me fez sentir melhor e fiquei muito feliz, pensando que o tratamento realmente funcionava. Maricil Duarte Moro

Ela então passou a ser exposta como "caso de sucesso" pelo dentista. Ao longo de 2023, Mari participou de lives com Botelho como exemplo de quem estava sendo curada pelo suposto tratamento hormonal propagado por ele. "Nesses meses que eu me senti bem, ele me usou muito para fazer propaganda para ele. Eu tinha que entrar em todas as lives dele praticamente, ele me colocou em livro, pedia para eu falar sempre com os alunos e os pacientes dele, para mostrar como eu parecia bem".

Mari Moro apareceu em lives e livros de Botelho como referência de suposto tratamento médico com reposição hormonal vendido pelo dentista como a "cura do câncer" Imagem: Reprodução e arquivo pessoal

Meses após iniciar a reposição hormonal, Mari começou a se sentir pior e descobriu que seu quadro havia agravado. "Eu fui passando cada vez mais mal, até que resolvi fazer exames e vi que as metástases tinham explodido. Eu já tinha emagrecido muito e estava quase sem voz", relata.

Quando fui questioná-lo, ele [Botelho] me ligou e começou a me humilhar, a gritar comigo para eu parar de fazer exames, dizendo que ele era o meu médico e que eu estava assim por causa da quimioterapia. (...) Só que eu estava quase morrendo, me sentindo muito mal, e decidi procurar ajuda médica de verdade.

Ela conta ainda que, na mesma época, quase perdeu o marido, que também recebeu indicação de tratamento hormonal. "Meu marido tomava anticonvulsivos por causa de uma cirurgia que fez no cérebro e o doutor [Botelho] mandou ele parar de tomar e começar a tratar com testosterona. Até que um dia ele teve uma convulsão fortíssima, foi para o hospital, e quase morreu".

O filho pequeno de Mari também foi prejudicado pelo tratamento hormonal, segundo ela. A mãe conta que a criança, depois de ter contato com os hormônios que ela passava na própria pele, começou a crescer de forma irregular. "Quando comecei a notar que meu filho não tava bem e questionei o doutor, ele dizia que não tinha nada a ver. Mas meu filho, com 5 anos, hoje tem a estrutura óssea de uma criança de 9. Ele também desenvolveu muitos pelos e o corpinho dele mudou muito rápido. (...) Agora, ele está em acompanhamento médico para entendermos o que pode ser feito", conta.

Há cerca de um ano, Mari retomou o tratamento com quimioterapia e tem tido resultados positivos. Os nódulos que haviam espalhado para o seu pulmão e fígado diminuíram e ela diz que tem se sentido melhor, acompanhada por uma nova equipe médica. "Por isso eu falo, se você não confia no profissional que está te atendendo, troca de profissional, vai procurar uma outra opção confiável, mas não cai nesses negócios alternativos aí", conclui.

Botelho já foi criticado por órgãos como o Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina e São Paulo. O Cremesp denunciou o dentista em outubro do ano passado. "O não médico, que ministra cursos de modulação hormonal, anuncia práticas que violam a Lei do Ato Médico e carecem de embasamento científico", diz trecho de texto divulgado pelo grupo.

Procurado, Botelho não retornou aos contatos da reportagem. Ele também bloqueou o acesso público a sua conta de Instagram nos últimos dias. O texto será atualizado em caso de futuras manifestações do dentista.

Tratamento contraindicado

Médico que acompanha Mari afirma que tratamento com hormônios proposto por Botelho é contraindicado para casos de câncer de mama. "A única reposição hormonal que pode ser segura no tratamento pós-câncer de mama são com estrogênios, por meio de cremes vaginais à base de hormônios, mas apenas em alguns casos seletos. Fora isso, qualquer outra forma de reposição hormonal, é proscrita [contraindicada] cientificamente, já que elas aumentam as chances de agravamento ou volta da doença", diz o mastologista e professor da Unesp Daniel Buttros, que integra a equipe médica de Mari.

Os hormônios sexuais proliferam células mamárias e isso aumenta o risco para câncer de mama. (...) O hormônio inicialmente traz uma sensação de bem-estar porque ele melhora a qualidade do sono, da pele, e traz vigor, por exemplo. São hormônios que trazem sensações de satisfação no curto prazo, mas para pacientes oncológicas não se justifica o uso, porque no médio prazo elas vão trazer a proliferação celular descontrolada e, com isso, o câncer se alastra. Daniel Buttros, médico mastologista

Promessas de cura do câncer são "absolutamente imprudentes", diz médico. "Ele [Botelho] e muitos outros profissionais com essas afirmações anticiência fazem com que as pessoas se prejudiquem tanto na prevenção quanto no tratamento de doenças", diz.

A gente não sabe o que leva esses profissionais a fazer isso, talvez pelo desejo de se tornarem famosos (...) É uma indústria de fake news, baseada em anticiência e com muita gente que acredita ainda, mas percebo que cada vez menos. Daniel Buttros, médico mastologista

Caso "demonstra porque pessoas fogem da medicina tradicional", segue mastologista, que já atendeu muitos pacientes que aderiram a tratamentos alternativos ineficazes. "Acredito que seja pela falta de acolhimento e comunicação de muitos médicos, diferente do que fazem inicialmente profissionais como o Marco Botelho", avalia.

Esses profissionais geralmente têm uma comunicação impecável que acabam seduzindo e dando esperança aos pacientes. É isso o que faz as pessoas irem para a medicina alternativa, pois esperam encontrar práticas milagrosas. Procuram essas alternativas depois que, de alguma maneira, se decepcionam com o tratamento médico tradicional, seja por falta de acolhimento ou de resposta às drogas, porque isso pode acontecer, já que a medicina não é 100% curativa ou milagrosa. Elas ficam abaladas e acabam indo procurar saídas mais sedutoras. Daí caem na mão desses profissionais anticiência.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

'Quase morri', diz paciente sobre falsa cura do câncer vendida por dentista - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade


Cotidiano