Ele é um padre casado: 'Fazemos um plano, e Deus faz outro'

Tiago Aragão, 38, se lembra de querer ser padre desde os 6 anos. Antes dele, sua família teve três sacerdotes. Após expressar a vontade, o então menino teve a vida preparada para isso.

Ele foi ordenado em 2012, mas deixou o sacerdócio quatro anos depois, frustrado com a exclusão que sofria por não concordar com visões "conservadoras" da Igreja.

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A saída significou abandonar um projeto de vida, mas Tiago decidiu "abraçar" o desconhecido: mudou de cidade, começou um trabalho e, quando percebeu, se viu apaixonado pela primeira vez.

"No local de trabalho, conheci uma linda mulher e logo nos tornamos amigos. Porém, com o tempo, descobri que não era apenas sentimento de amizade", conta ao UOL.

Hoje, os dois são casados, e Tiago voltou a ser padre: desta vez na Igreja Ortodoxa, que não impõe o celibato aos sacerdotes. "Me coloquei à disposição da Igreja e disse: se é para ir, eu vou."

Preparado desde a infância

Tiago cresceu sob a influência dos padres de sua família. Ele teve muito contato com um deles, que foi seu orientador espiritual da infância até 2002, quando morreu aos 77 anos. Mas esse não foi o único motivo para seguir a sacerdócio: ele é de uma região do Ceará marcada pela forte religiosidade popular.

Desde muito novo, a minha avó me levava para grupos de orações, missas em comunidades rurais, tinha a partilha das rezas, procissões. A minha vida foi preparada para isso desde que expressei [a vontade de ser padre], principalmente pelos mais velhos da família.
Tiago Aragão

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Aos 17, Tiago entrou para o seminário dos frades franciscanos. Foram nove anos até ser ordenado presbítero. Segundo ele, uma caminhada de discernimento, descobertas, vivências e estudos até fazer os três votos: de pobreza, castidade e obediência. "Cada passo para mim foi muito bem vivido e muito feliz."

'O povo me fez padre'

Dois anos depois, foi transferido para a Bahia. Diz que ali virou de fato padre, a partir do contato com o povo. "Foi um processo bonito e forte. Mesmo sabendo o que eu queria desde pequeno, com o povo eu aprendi a ter um diálogo inter-religioso e a conviver com a sua cultura."

O povo baiano me fez padre, me converteu e me ensinou a ser mais humano. Com o povo, eu aprendi que um ofertório pode ser a roda de samba, porque o que faz parte daquela cultura é a roda de samba.
Tiago Aragão

Essa visão o aproximou da Teologia de Libertação, a corrente de pensamento cristã do padre peruano Gustavo Gutiérrez, que morreu aos 96 anos em outubro passado. Gutiérrez pregava que a Igreja Católica deveria colocar os mais pobres como prioridade, em busca de justiça social. O capitalismo causaria o sofrimento de muitos "irmãos e irmãs humanos".

Nos anos 80, essa visão foi muito forte no Brasil, com o povo que se reunindo para rezar a partir da sua realidade. Aquilo me encantou, e eu vesti a camisa. Só que, na Igreja, temos uma linha forte conservadora. Se você fez o que a Igreja não aceita, você é excluído.
Tiago Aragão

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Renúncia

Para Tiago, por exemplo, era incongruente manter uma vida confortável na casa paroquial, que recebe os presbíteros, sendo que a maioria dos fiéis não partilhava da mesma realidade.

A diferença virou inquietação. Ele conversava com a psicóloga da congregação e percebia que o conflito minava a sua vontade de estar no sacerdócio. Mas como isso era possível se ele quis aquilo a vida toda?

Tiago entrou em uma profunda depressão. Sustentou o desejo da vocação religiosa até onde pôde, mas percebeu não querer mais estar ali ou em nenhum outro altar. "Isso não é só daquela localidade", diz.

Conta que escreveu três cartas em um ano para abdicar da posição, mas só teve coragem de entregar a última.

Fui ao fundo do poço. É um conflito muito intenso. Pensava: sair vale a pena? Eu sempre desejei isso. A família pesa. Como é que eles vão receber isso? Vou ser o primeiro padre da família a deixar [o sacerdócio]? Mas tem um momento que você não aguenta. Lembro de uma consulta em que a psicóloga disse: até que ponto vale a pena você desejar ser padre?
Tiago Aragão

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Um pedido à Aparecida

Meses após renunciar, em 2017, Tiago recebeu o convite de uma tia e mudou-se para São Paulo.

Sua primeira parada no estado foi no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. Diante da imagem, pediu à santa que lhe indicasse um sentido para a vida. "Estava cheio de conflitos, sobretudo com a família e rezei com muita fé."

Sentiu que devia "conhecer o mundo" após se estabelecer na capital. Começou a trabalhar e fez novos amigos —entre eles, uma se destacou: a parceira de trabalho com quem conseguia falar das angústias de deixar a Igreja, impossíveis de se dissiparem rápido.

Conversava sobre as minhas dores com ela, porque não é uma coisa que você se desliga, mas também sobre alegria e esperança. Fui partilhando, foi a primeira vez que senti confiança para falar coisas que eu não sentia coragem de falar nem para a psicóloga. Tiago Aragão

As coisas mudaram três anos depois. Tiago disse sentir um "aperto no peito" perto da época de tirar férias.

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Era ansiedade, mas não entendia o porquê. A sensação cresceu nos dias seguintes, quando viajou ao Nordeste. Lá, deu-se conta: eram saudades da amiga —e, talvez, ele desejasse que ela fosse mais do que isso. "No 3º dia, eu falei: 'a falta está me doendo'."

Voltou a São Paulo antes do previsto e entendeu estar apaixonado. Foram muitas descobertas: era a primeira vez que se sentia assim, já que desde pequeno fora preparado para ser padre. Contou para ela, que sentia o mesmo.

Mas, ao invés de ficarem juntos, se distanciaram. Achavam que impor a ausência apartaria o sentimento. Tiago cogitou até voltar a ser padre, mas desistiu após um amigo sugerir ser uma fuga. "Isso me fez pensar. O chão seria outro, mas a realidade seria a mesma. Abandonei a ideia e encarei o que a vida me ofereceu."

Tiago se declarou novamente em um texto. Eles assumiram o amor e se casaram meses depois.

O padre reabilitado Tiago Aragão, ao lado da esposa
O padre reabilitado Tiago Aragão, ao lado da esposa Imagem: Arquivo pessoal

O tumulto emocional na época era tamanho que só notou um detalhe tempos depois: ele se casou com Maria Aparecida Barbosa Conceição, 45. Aparecida, como a santa a quem pediu um sentido na vida. "Retornei com ela para agradecer e disse: 'Nossa Senhora, você deu um sentido muito grande'."

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Brinco que Maria Aparecida é a mulher de um padre casado.
Tiago Aragão

Tiago e sua Aparecida: eles se conheceram no trabalho
Tiago e sua Aparecida: eles se conheceram no trabalho Imagem: Arquivo pessoal

Tempo de graça

No ano passado, Tiago foi chamado por um amigo para se reabilitar padre na Igreja Ortodoxa.

A instituição cristã surgiu após o Grande Cisma, em 1054, marcado pela separação da Igreja Apostólica Romana, que segue o Vaticano —essa é uma das principais diferenças, porque na Ortodoxa não há um papa.

Padres ortodoxos podem ser casados e trabalhar —Tiago, por exemplo, é professor de história.

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Fui rezar, meditar, conversar com a minha esposa e nunca esqueço o que ela falou: se você decidir ir, vou estar com você e se você decidir não ir, vou estar com você. Te apoio de todas as formas.
Tiago Aragão

Tiago hoje em dia, reabilitado padre na Igreja Católica Ortodoxa
Tiago hoje em dia, reabilitado padre na Igreja Católica Ortodoxa Imagem: Arquivo pessoal

"Foi uma nova crise, repassar tudo da minha vida e pensar: voltar um padre casado? Mas entendi que talvez era um tempo de graça, e eu não podia perder. E, de fato, é um tempo de graça na nossa vida hoje."

Tiago assume a partir deste mês uma igreja na Bahia, o mesmo lugar onde aprendeu a ser padre e desistiu da batina. "Nós fazemos um plano, e Deus faz outro."

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