Plano de prisão em massa tira paz de brasileiros em santuário de imigrantes

Os 45 mil imigrantes brasileiros na região de Chicago, nos EUA, acordaram na sexta-feira (17) no olho do furacão de xenofobia do segundo governo Trump.

O que aconteceu
O Wall Street Journal vazou um plano de fazer da cidade, de tradição liberal e receptiva, o palco da primeira operação anti-imigrantes da nova administração. Até 200 agentes estariam preparados para prisões em massa já na terça-feira (21), um dia após a posse presidencial.
Os alvos são pessoas com ficha criminal. Porém, qualquer imigrante sem visto encontrado durante as operações também será preso e deportado, diz o plano vazado pelo jornal. Trump foi eleito com a promessa de realizar a maior deportação em massa da história do país.
A notícia se espalhou nos grupos de brasileiros em Chicago. Também mobilizou advogados e psicólogos com ofertas de ajuda, e despertou reações entre o temor e a confusão: "E quem vai trabalhar para eles? O serviço pesado aqui é nosso", diz ao UOL uma mineira que trabalha como babá.
Esquerda ressentida
O ressentimento com o governo democrata e sua abertura à imigração pegou até entre pessoas mais à esquerda. Essa é a avaliação de Maria Drell, que mora em Chicago há 40 anos e, há 23, fundou o Centro Cultural Brasileiro na cidade.
Chicago é, oficialmente, uma "cidade-santuário" para a imigração nos EUA. São locais com governo progressista e políticas para receber e ajudar pessoas de fora do país, com auxílios de saúde e educação. Por isso, estão no alvo nacional de Trump.
"Depois da pandemia, muitos recursos que iam para as comunidades locais foram para receber refugiados", explica Maria. "E a situação econômica aqui não estava boa. Isso criou uma tensão e um ressentimento."
"Os brasileiros nem são as pessoas em situação mais vulnerável", diz a diretora do centro. Em geral, eles chegam com visto de turista e com recursos. "É o contrário da maioria da Síria e do Sudão, por exemplo, que precisam de ajuda total."
Ela lembra que, no primeiro governo Trump, a retórica anti-imigrante não se traduziu em prática tão diferente da dos democratas. Por isso, recomenda cautela. "Temo mais é a 'autodeportação', a fuga voluntária de pessoas boas e talentosas."
Confusão no grupo
"O brasileiro aqui não gosta muito de falar em política. Trabalhamos muito e evitamos o assunto", diz Patrícia Silva, 30 anos. Por isso a notícia causou incômodo nos grupos.
"O americano quer trabalhar em escritório. Quem corta a grama, faz todo o serviço, é o imigrante. Não sei como fariam com uma deportação em massa", diz Patrícia.
"Acho que quem está em perigo são os criminosos. O resto é quem faz a economia girar", ela afirma. A brasileira chegou a Chicago há nove anos. Ela trabalha como babá e vende pães de queijo para a comunidade brasileira —e especialmente mineira— da região.
Em uma das comunidades no Facebook, a notícia do plano de Trump chegou ainda na sexta-feira (17). Isso aumentou o número de pessoas buscando ajuda, diz Maria Eduarda Leal Uga, que trabalha no atendimento de um escritório especializado em imigração.
Ela trabalha em Tampa, na Flórida, mas atende brasileiros em todo o território norte-americano, e viu os pedidos de Chicago dispararem. "A gente está trabalhando no sábado e no domingo e não está dando conta da demanda", diz.
"As pessoas estão assustadas, com medo de ir ao tribunal [para regularizar a situação]", diz Eduarda. "É o contrário do que recomendo. Se o governo quiser te achar, vai achar. O ideal é se apresentar e mostrar que você não é criminoso, só quer trabalhar."
Atendimento psicológico
O grupo de brasileiros em Chicago viu crescerem ofertas de apoio psicológico. Fabiano Goertz Cipeli, psicólogo em São Paulo, achou nos atendimentos online a imigrantes brasileiros um filão para seu trabalho.
"Noto as pessoas fora do país em situação cada vez mais vulnerável", afirma. "Elas têm alto volume de trabalho, muitas vezes sozinhas, com uma sensação de serem indesejadas."
"Muitas não podem nem visitar os parentes aqui, senão não podem voltar", diz o psicólogo. "Aí começam problemas de depressão e transtorno de ansiedade generalizada".
"Seu passaporte de volta"
Outra oferta recorrente no grupo é de regularização de passaporte. Muitos imigrantes que atravessam a fronteira têm o documento retido após a travessia, e por isso ficam com dificuldade de trabalhar enquanto tentam se legalizar no país.
Aí vêm os anúncios de ajuda com o passaporte. Uma das pessoas que oferecem o serviço diz ao UOL que faz a ponte com consulados, como um despachante, para conseguir uma nova via do documento. Ele se apresentou como Sérgio, mas não deu o sobrenome.
"As pessoas chegam só com a roupa do corpo, muitas vezes ainda devendo aos 'coiotes' pela travessia", ele diz. "Muitas vezes os 'coiotes' ameaçam até a família da pessoa no Brasil se ela não pagar a dívida. E sem um passaporte elas não conseguem trabalhar."
Ele afirma receber de dez a 15 contatos por semana de brasileiros que atravessaram a fronteira e ficaram sem o passaporte. E que, mesmo com o temor atual, não notou uma diminuição nessas chegadas.
"Vai doer na minha carne"
Mesmo que a própria situação no país fique pior, há brasileiros que concordam com a política mais restrita. É o caso do tatuador Leonardo*, 47 anos, de São Leopoldo (RS).
"Desde as últimas eleições eu notei os americanos mais neuróticos em relação a isso", diz Leonardo. Ele passa temporadas trabalhando nos EUA, por não ter o visto definitivo, e no fim do ano ficou 45 dias em Chicago.
"Sei que vai doer na minha carne, mas a imigração se tornou um problema tão grande nos EUA que eles vão ter que resolver de algum jeito." Ele voltou ao Brasil para tratar um problema de saúde e não sabe quando poderá voltar.
* O entrevistado pediu para não ter seu nome completo divulgado
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