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Cotidiano

Mulher de PM me ameaçou na delegacia, diz motociclista alvo de tiros no Rio

Em entrevista exclusiva ao UOL na tarde desta quarta-feira (26), o mototaxista Thiago Marques Gonçalves, 24, contou que foi ameaçado de morte na delegacia pela esposa do policial militar da reserva que disparou contra ele na última segunda-feira (24).

Gonçalves deixou a prisão na terça após a Justiça considerar que não havia provas contra ele. Na motocicleta também estava o estudante Igor Melo de Carvalho, que foi baleado e acabou perdendo um rim.

O que aconteceu

"Primeira reação dela foi me acusar". Ao chegar na 22ª DP (Delegacia de Polícia), na Penha, Thiago deu de cara com a cabeleireira Josilene da Silva Souza, 42, que havia tido o celular roubado na noite de domingo (23).

"Ela disse: 'Foi esse safado aí, foi esse pilantra aí que me roubou'". Na mesma hora, me ajoelhei e falei: 'Pelo amor de Deus, me reconhece, não fui eu, não fui eu'", contou o jovem ao UOL. A reportagem não conseguiu localizar a defesa de Josilene.

Ela não olhava pra mim, ficava me xingando e falando que tinha orgulho de ser mulher de polícia, que se tivesse um revólver tiraria minha vida ali mesmo.
Thiago Marques Gonçalves

Mulher afirmou que queria que Thiago estivesse morto. "Ela disse que não sabia o que eu tava fazendo ali, que [o marido dela] devia ter me matado ali mesmo. Ela só me desejava o ruim, o mal."

Thiago disse que provaria inocência. "Teve uma hora que eu falei pra ela: 'Vou te provar que não fui eu que te roubei, vai ser provado. Você vai me pedir desculpas ainda'", afirmou o jovem.

Pedido de desculpas traria alívio, diz Thiago. Ele quer que Josilene e o marido, o policial militar da reserva Carlos Alberto de Jesus, 61, reconheçam que estavam errados e que se desculpem, além serem responsabilizados criminalmente. "Não apagaria o que fizeram, porém daria uma sensação de alívio", disse.

26.fev.2025 - Thiago Marques Gonçalves cede entrevista ao UOL após ser solto de prisão ilegal
26.fev.2025 - Thiago Marques Gonçalves cede entrevista ao UOL após ser solto de prisão ilegal Imagem: Luís Adorno/UOL
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Motorista e passageiro se jogaram de viaduto

Thiago afirma que começou a trabalhar às 16h como motorista de aplicativo de moto na região onde mora. Por volta das 21h, foi encontrar o pai, em Ramos, zona norte. Uma hora depois, mesmo contra a vontade do pai, decidiu voltar a trabalhar.

"Fui comer um salgado e aí chegou a corrida do Igor." Depois de buscar Igor, Thiago conta que percebeu um carro em alta velocidade no viaduto da Penha. "Abri passagem. Ele [policial] pareou do meu lado, botou o revólver pra fora e puxou o gatilho. Aí na minha cabeça era só sair do caminho do disparo", relembrou.

Motorista e passageiro pularam de viaduto. "Corremos pra fora da visão do policial, pra trás do carro dele. Quando eu notei que tava muito distante pra descer do viaduto, tive a ideia de pular do viaduto. Eu e o Igor pulamos do viaduto e corremos para uma rua perto dali. Foi quando o Igor viu que tava baleado", disse.

Eu falava pro Igor: 'O que você fez? O que você fez pra esse cara atirar?', e ele falava: 'Não fiz nada, não fiz nada, sou trabalhador, me ajuda, não me deixa, não me abandona'. Eu falei que não ia abandonar.
Thiago Marques Gonçalves

De vítima a suspeito

Volta do policial ao local. "Aí a gente viu que o carro voltou em alta velocidade procurando a gente. Aí a gente pulou um portão, caímos num corredor e pulamos mais um muro. Tirei a blusa do Igor, vi que ele realmente estava baleado. Com o celular dele a gente conseguiu o socorro. O pessoal do trabalho dele chegou rápido até", afirmou.

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Depois de entrar no carro junto com Igor, Thiago quis ir até a moto. Quando percebeu que a moto não tinha condições de ligar, o mototaxista viu, debaixo do viaduto, um estabelecimento fechando e foi até lá para tentar um celular emprestado para pedir socorro a algum familiar. Foi quando notou o policial retornando e, com ele, cinco viaturas da PM.

Eles vieram na minha direção me abordando. Um grupo de policiais estava com o dono do carro. Aí ouvi nesse grupo: 'obrigado pela ajuda aí, já tem uma vítima lá na delegacia e ela vai reconhecer ele'. Eu falei: 'Tô sendo suspeito?', e o PM: 'Sim, tá sendo', respondi: 'Eu acabei de sofrer um suposto roubo e eu sou suspeito? Eu sou a vítima'. O policial falou para explicar na delegacia Thiago Marques Gonçalves

26.fev.2025 - Thiago Marques Gonçalves ao lado da mãe, Jaqueline Marques de Farias
26.fev.2025 - Thiago Marques Gonçalves ao lado da mãe, Jaqueline Marques de Farias Imagem: Luís Adorno/UOL

De sustento, moto se tornou dívida

Moto alugada. Depois de ser demitido de um emprego de açougueiro, no fim do ano passado, Thiago passou a ser condutor de corridas de aplicativo de moto. Teve a moto roubada. Para não deixar de trabalhar, conseguiu alugar uma segunda moto, ao custo de R$ 350 por semana. Era essa a moto que pilotava quando sofreu o atentado na madrugada de segunda-feira.

Moto está na 22ª Delegacia de Polícia. "Tá irreconhecível. Totalmente quebrada. Não tem possibilidade de andar. E eu não tenho possibilidade de trabalhar. Não sei o que vou conseguir fazer, era meu único sustento, era meu ganha pão. Era a pensão da minha filha. A minha vida dependia daquilo ali: contas, comer, viver", disse Thiago.

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Estou arcando com essa despesa mesmo sem estar usando. Não sei como vai ser. Vou ter que arcar com essa despesa sem ter o dinheiro. A moto se pagava, agora não sei como vai ser, como vou fazer.
Thiago Marques Gonçalves

Cadeia e renascimento

"É pior do que se trata um animal." Thiago afirmou que a noite que passou na delegacia foi em claro. "Não consegui dormir. Não tinha uma cama, era uma chapa de ferro. E essa chapa de ferro tinha várias pontas. Aquilo ali é horrível. E no chão não podia deitar porque tinha muito rato", disse.

Traumas na saída. Ao sair da prisão, ele disse que passou um filme pela sua cabeça. "Foi como se eu tivesse nascido de novo, mas o pós também é ruim. Colocar a cabeça no travesseiro, lembrar de tudo o que passou. Pra mim, foi um pesadelo. Às vezes eu não acredito que passei aquilo, mas fecho os olhos e lembro", disse

Noite na cadeia foram as piores horas da minha vida. Com certeza a pior experiência que eu tive na vida.
Thiago Marques Gonçalves

Thiago Marques Gonçalves (esq.) e Igor Melo de Carvalho (dir.) foram alvejados pelo policial militar da reserva Carlos Alberto de Jesus na madrugada de 24 de fevereiro de 2025
Thiago Marques Gonçalves (esq.) e Igor Melo de Carvalho (dir.) foram alvejados pelo policial militar da reserva Carlos Alberto de Jesus na madrugada de 24 de fevereiro de 2025 Imagem: Arquivo pessoal
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Relembre o caso

A cabeleireira Josilene teve o celular roubado na Penha, zona norte do Rio, às 23h de domingo. De acordo com o boletim de ocorrência, o policial militar da reserva Carlos Alberto de Jesus havia deixado a mulher na rua Irani, na Penha, por volta das 23h e saiu para comprar uma pizza. Quando voltou, ouviu da mulher que ela teve uma pistola apontada contra o rosto e que os assaltantes tinham levado seu celular.

Mulher afirmou que os assaltantes estavam em uma moto azul. Além disso, observou que o motorista estava com uma camiseta preta, e que o comparsa, que foi quem apontou a arma, estava com uma roupa amarela. Duas horas depois, Josilene apontou para o marido dois homens com características semelhantes no mesmo bairro.

PM emparelhou seu carro, um Golf prata, à motocicleta pilotada por Thiago. Igor estava na garupa; ele voltava para casa após ter trabalhado na noite de domingo em uma casa de samba na região.

Josilene e Carlos afirmaram que o PM só atirou porque viu que Igor tentou sacar uma arma. Nem a suposta arma nem o celular roubado de Josilene foram localizados. Os depoimentos foram colhidos pela delegada Lorena Gonçalves Lima Rocha, da 22ª DP.

O reconhecimento foi feito por fotografias. Nove fotos, de nove homens com características físicas semelhantes, foram colocadas em um papel para que Josilene reconhecesse quem roubou seu celular. Ela reconheceu Thiago como o piloto e Igor como quem puxou seu telefone.

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Provas e investigação

Thiago e Igor têm provas de que não eram os assaltantes do celular de Josilene. Thiago trabalhava desde as 22h como motorista de aplicativo. Igor, como garçom em uma casa de samba na Penha até 1h. Imagens do circuito interno do estabelecimento mostram ele saindo do local duas horas depois do assalto.

Câmera de casa de samba mostra Igor saindo do trabalho na madrugada de 24 de fevereiro de 2025
Câmera de casa de samba mostra Igor saindo do trabalho na madrugada de 24 de fevereiro de 2025 Imagem: Reprodução

Igor estava com uma camiseta amarela que era, justamente, o uniforme da empresa —onde trabalha aos finais de semana para complementar renda. Thiago tinha carteira registrada como auxiliar de açougueiro até o fim do ano passado. Desde então, passou a alugar uma moto para trabalhar em média 17 horas por dia como motorista de aplicativo.

A Polícia Militar afirmou que, na delegacia, um PM da reserva se apresentou como autor dos disparos. "Sua esposa teria reconhecido o condutor da moto como um dos responsáveis pelo roubo de seu aparelho celular. Um dos homens foi preso, enquanto o ferido permaneceu sob custódia no referido hospital", afirmou a PM em nota.

PM da reserva prestou novo depoimento. Ao ser ouvido pela segunda vez na 22ª vez na manhã desta quarta-feira, o policial militar da reserva alterou o primeiro depoimento, dizendo que viu de Thiago e Igor fazendo "movimentos suspeitos" e afirmou que se confundiu nos horários, com o roubo tento acontecido mais tarde do que 23h.

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Tentativa de homicídio investigada. A PM informou no início da tarde desta terça-feira que "colabora integralmente com o trabalho de investigação da Polícia Civil" e que "o caso foi encaminhado à Corregedoria da Geral da Polícia Militar".

Investigação está em andamento na 22ª DP. Segundo a Polícia Civil, Igor foi ouvido no hospital. "Os agentes buscam imagens de câmeras de segurança e outros elementos que comprovem a real dinâmica dos fatos. Todas as evidências serão analisadas, a fim de apurar a conduta e a responsabilidade de todos os envolvidos, bem como os crimes que possam ter sido praticados", observou a Polícia Civil em nota.

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