A capital do lobisomem: como uma cidade de SP transformou o medo em turismo


Junho de 2018, em uma noite de lua cheia na cidade de Joanópolis (a cerca de 100 km da capital paulista), um bicho peludo, grande e com a traseira alta pula de uma ribanceira na parte de trás do cemitério da cidade.
Quem narra o fato, tirando o chapéu momentaneamente em sinal de respeito, é o comerciante Juliano, conhecido como Juca Quintana, 42, que estava em seu passeio quinzenal de mula e ficou assustado ao presenciar a cena.
Me arrepia lembrar, no dia nem tinha bebido. As mulas que sentiram primeiro e fizeram um barulho por causa do susto. Logo depois, pulou um bicho do barranco e a hora que caiu, correu muito rápido. Pulou bem do nosso lado, um lobisomem... Pelo menos lobo tenho certeza que era.
Juca Quintana, comerciante
Juca, que é dono de uma loja de queijos, passou boa parte da vida na zona leste da capital paulista, mudou-se para a cidade do interior, conhecida como a capital do lobisomem, com cerca de 11 mil habitantes, em 2004, quando comprou um alazão arisco de nome Ventura e recebeu a recomendação de um domador na região.
"Vim para amansar o Ventura, mas no final esse lugar que me amansou. Essa lenda de lobisomem é contada pelos antigos aqui, sempre ouvi, por isso acredito que seja verdade. Hoje, não saio mais sozinho para andar a cavalo", conta.
Lenda passa por gerações
No Alambique Quinta Benedito, um boneco de lobisomem na fachada atrai turistas para fotos. Juca apresenta os proprietários à reportagem do UOL João Benedito, 39, e Michele Benedito, 38, que mesmo sem terem visto o bicho, confiam nos relatos do amigo.
O aposentado Benedito Vieira, 86, recorda ter avistado a criatura de orelhas grandes que, segundo ele, só causa problemas se desafiada: "Se gritar lá vai chumbo ou olha o pilão [de pilar café], eles correm de medo".
Juca conta que a lenda impulsiona a visita de turistas e gera oportunidade para artesãos como Reinaldo de Araújo, 84, que produz bonecos de lobisomem há 17 anos.
Ele tinha orelhas grandes, como de mula, quando anda faz barulho delas dobrando e batendo. Vi uma vez pescando, o tal passou correndo, meio agachado, e outra vez foi voltando do centro da cidade, tem uns 30 anos.
Benedito Vieira
"Desde que montamos o comércio temos esses bonecos de lobisomem, alguns artesãos fazem e nos vendem. Cada um custa em torno de R$ 1.800. Quando os turistas vêm, coloco uma linha de pesca no braço do lobisomem e puxo, os carros fazem fila e quase batem", conta Quintana sobre a sua loja de queijos.
Comedor de crianças não batizadas
A cerca de nove quilômetros do centro da cidade, por uma estrada sem asfalto, Bento Pinheiro nos recebe na varanda de sua casa, que tem uma pequena sala repleta de imagens de santos católicos. Aos 79 anos, o agricultor lembra vividamente os encontros com lobisomens.
"A primeira vez foi em 1981, ele [lobisomem] pega crianças não batizadas, como moramos na zona rural, minha sexta filha demorou para ser. O lobisomem arranhava a porta e tentava entrar na nossa casa. Abri a janela e vi a cara dele, era preta e com dentes grandes. Espantei ele com uma tocha acesa", recorda.
Mais tarde, em 1991, o agricultor afirma ter se encontrado novamente com o bicho, quadrúpede e um pouco corcunda, dessa vez ele o encarou. "Joguei pedras, mas ele correu. Se tocar nele o pelo te queima e se arrancar sangue a maldição vai para você", conta Pinheiro.
A história da lenda acompanha a família de Bento desde o seu pai, que conta que antes de se transformar na criatura, o sujeito afetado pela licantropia tem o hábito de rolar sobre as fezes de cavalo. Hábito que o pai dele tentou reproduzir por muito tempo.
Meu pai queria virar lobisomem. Ele tirava a roupa e rolava na bosta de cavalo querendo se transformar. Nunca deu certo.
Bento Pinheiro, agricultor
A filha de Bento, Maria Helena Pinheiro, 43, que antes se envergonhava da história, agora ajuda o pai a escrever um livro sobre a criatura.
Me chamavam de mulher do lobisomem porque o meu pai diz que viu lobisomens. Antes, tinha vergonha dessa história, mas hoje tenho orgulho. Em 2016, meu pai chegou a dar palestras na escola do bairro falando sobre a lenda e o encontro dele com o lobisomem.
Maria Helena Pinheiro, filha de Bento Pinheiro
Perto dali, seguindo mais à frente pela mesma estrada, o empresário Elias de Matos, 39, na Cachoeira dos Pretos, explora a lenda em seu restaurante, onde, fantasiado de lobisomem, cobra por fotos com os turistas e usa o valor arrecadado para ajudar 11 famílias em situação de vulnerabilidade.
O McDonald's e a maçonaria
Joanópolis é repleta de "causos", mas é o do lobisomem que dá fama ao local e se tornou em parte uma atração turística, explorada pelos comércios e pela prefeitura, que mantém um grande boneco de cerca de cinco metros de altura no portal de entrada da cidade.
Desde quando os bonecões de lobisomens são usados ninguém sabe ao certo, mas tem pelo menos duas décadas —e a lenda da licantropia remonta à fundação de Joanópolis, em 1878, quando um dos fundadores, Anselmo Caparica, um homem alto, que gostava de sair à noite e foi um membro da maçonaria, vivia sob o boato de ser um lobisomem.
Caparica era tido como lobisomem porque em uma noite de tempestade foi socorrer um cachorrinho e se enrolou em um pano felpudo para sair na chuva. Quando se abaixou para pegar o animalzinho deu um relâmpago e as pessoas que passavam na rua viram aquela coisa enorme sobre o cãozinho e saíram gritando: 'Seu Anselmo é lobisomem'. Ele não levava a sério essa história.
Valter Cassalho, folclorista e fundador da Associação de Criadores de Lobisomem, que há 27 anos estuda a relação da lenda com a cidade
Em 1983, a folclorista Maria do Rosário de Lima, neta de Anselmo Caparica, defendeu uma tese para a FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), que explora a relação e a tradição da lenda com a cidade, coletando e catalogando relatos de moradores —que mais tarde deram origem ao livro "Lobisomem: assombração e realidade".
Mas o que tornou o lobisomem realmente pop foi uma ação publicitária do McDonald's, que em 1998 gravou uma série de comerciais explorando lendas brasileiras.
No comercial sobre o lobisomem, alguns moradores de Joanópolis participaram. O jargão era o McDonald's baixou os preços, isso não é lenda.
Valter Cassalho, fundador da Associação de Criadores de Lobisomem
Ao UOL, a rede de fast food, que não tem lanchonete na cidade —a mais próxima está a cerca de 40 km de Joanópolis, em Bragança Paulista— afirma que prefere não comentar especificamente sobre o comercial, pois não há mais ninguém da época da campanha na empresa.
Logo após a veiculação da propaganda, Cassalho, formado em história pela Fesb de Bragança Paulista, criou a Associação dos Criadores de Lobisomem, que hoje mantém a herança de catalogar algumas histórias, mas tem primordialmente a função de manter a tradição da lenda viva —além de investir em algo que denomina "turismo do imaginário".
"Hoje em dia, o lobisomem pode ser considerado o carro chefe na divulgação do turismo da cidade, aproveitando o folclore e mostrando as belezas naturais do município. Criamos um lobisomem bebê, com bonecos e ilustrações que ensinavam as crianças a escovar os dentes", diz Cassalho.
Quem está por trás do lobisomem de Joanópolis?
Cassalho explica que o lobisomem tem origem europeia e veio ao Brasil durante a colonização portuguesa, mas na cidade a figura tem um tom menos amedrontador, apesar de levantar temor em alguns moradores e trabalhar em paridade com conceitos religiosos.
"Sempre era dito que sujeitos muito magros, amarelos, que talvez sofressem de amarelão [icterícia], eram lobisomens. O mesmo se dizia dos muito peludos. Mas o lobisomem toma um controle social, criando o medo para batizar os filhos e até ajudando os pais a colocarem os filhos para dentro de casa, dizendo que está na hora do lobisomem", aponta o folclorista.
Cassalho não teme o sobrenatural, mas acredita que a lenda da licantropia pode ter origem em avistamentos de animais silvestres. A maldição, associada a diversas condições —como ser o sétimo filho homem ou passar dez anos sem confissão—, pode, na verdade, esconder encontros com animais da fauna local.
"Aqui já vimos bugios e lobos-guará. Há anos, um funcionário de uma pousada, que se vestia de lobisomem, jurava que, certa vez, o ser sobrenatural sentou ao seu lado num banco. Ele se mudou da cidade assustado. Dissemos que era um bugio, mas ele não acreditou", conta o folclorista.
Tem como explicar o que as pessoas viram?
Mas o que pode explicar um bicho corcunda, que anda quase em pé? De acordo com o biólogo Rogério de Paula, que pesquisa lobos há 28 anos e é coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Coordenador de Mamíferos Carnívoros do ICMBio, há registros de lobos-guarás na região e o encontro com o animal "pode surpreender".
O lobo-guará é o maior canídeo da América do Sul e o mais alto do mundo em altura de cernelha (dorso). Seu porte impressiona, e ele se desloca de forma silenciosa e cautelosa, característica essencial para caçar presas pequenas, como roedores e aves terrestres. Suas orelhas, sempre em movimento, funcionam como radares independentes, captando até sons inaudíveis para os humanos.
Rogério de Paula, biólogo
Para De Paula, a imagem do lobisomem pode estar ligada à descaracterização do lobo-guará, especialmente quando o animal está com sarna: "Sem a pelagem, seu corpo fica magro e desfigurado, e sua forma alongada pode parecer incomum. Além disso, ao trotar, ele dá impulsos com as patas traseiras, criando a ilusão de que está no ar, o que pode reforçar essa confusão".
O biólogo e primatologista Rogério da Cunha, professor da Unifal (Universidade Federal de Alfenas), ressalta a possível presença do bugio-ruivo (Alouatta guariba) na região de Joanópolis.
"O bugio-ruivo tem chances reais de estar na zona rural de Joanópolis, pois a região faz parte da área de distribuição da espécie", afirma da Cunha. No entanto, ele pondera que a relação desses primatas com a lenda do lobisomem é improvável, já que são animais diurnos, não muito grandes e passam a maior parte do tempo nas árvores. "Eles raramente descem ao solo e, quando o fazem, é com extrema cautela", explica.
Entre real e sobrenatural, Juca não anda mais a cavalo à noite sozinho, e preferiu não comparecer ao local próximo ao cemitério, em uma área descampada, onde afirma tê-lo visto. "Está de noite já, prefiro não ir, essa vou ficar te devendo", disse ao telefone.