Cataratas do Iguaçu podem 'mudar de dono' após disputa judicial; entenda

Uma decisão da Justiça transferiu uma área equivalente a mais de mil campos de futebol do Parque Nacional do Iguaçu, que pertence à União, para o estado do Paraná. Ainda cabe recurso, mas se a decisão for mantida, parte das verbas obtidas com o turismo nas Cataratas, que hoje vão para a União, ficarão para o estado.

O que aconteceu

O TRF-4 decidiu que 1.085 hectares no Parque Nacional do Iguaçu pertencem ao Paraná. A área inclui o trecho brasileiro das Cataratas do Iguaçu e o Hotel das Cataratas, instalado em 1958.

A disputa começou em 2018, quando a União entrou com ação para cancelar o registro da área feito pelo Paraná no Cartório de Foz do Iguaçu. O governo alegou que o território era terra devoluta federal, ou seja, um bem público sem posse privada. A justiça de Foz do Iguaçu decidiu em favor da União, mas o Paraná entrou com recurso, levando o caso ao TRF.

A decisão do TRF-4, promulgada em 5 de fevereiro de 2025, reconheceu a posse do Paraná. A argumentação foi de que a área foi concedida a um particular pelo Ministério da Guerra em 1910 e adquirida pelo Paraná em 1919. No centro da questão está Jesus Val, um empresário espanhol que, no início do século 20, recebeu do Ministério da Guerra uma concessão de terras na Colônia Militar do Iguaçu, uma região estratégica na fronteira.

Em 1919, o governo do Paraná comprou a área de Jesus Val e registrou a propriedade no cartório de Foz do Iguaçu. Segundo a PGE-PR (Procuradoria-Geral do Estado do Paraná), essa transação foi legal e fez com que a terra perdesse o caráter devoluto, ou seja, deixasse de ser domínio federal.

Desembargadores entenderam que a União nunca titulou a área diretamente ao estado, mas também não impediu a sua venda a um ente estadual. O relator do caso, desembargador Luiz Antonio Bonat, afirmou que "a área foi titulada a um particular e, posteriormente, adquirida pelo Estado do Paraná, o que a retirou do rol de terras devolutas". O voto foi acompanhado pelos desembargadores João Pedro Gebran Neto e Gisele Lemke.

O governo do Paraná celebrou a decisão, classificando-a como uma vitória histórica na disputa fundiária com a União. A PGE-PR afirmou, em nota, que a decisão do TRF-4 confirma o direito legítimo do estado sobre a área e encerra uma controvérsia que se arrastava há anos. "O Estado do Paraná nunca concedeu a posse da área para Jesus Val, e quem o fez foi o Ministério da Guerra", declarou.

Conforme a PGE, a decisão representa um grande potencial financeiro ao Paraná. Uma das possibilidades é a destinação de parte das receitas da concessionária que administra os serviços turísticos do Parque do Iguaçu para o estado. Atualmente, 7% da receita bruta é direcionada ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), responsável pela gestão da área total do parque, mas o Paraná já indicou interesse em rediscutir essa divisão, argumentando que o estado também deve se beneficiar da exploração turística.

O parque do Iguaçu é o segundo mais visitado do país, atrás apenas do Parque Nacional da Tijuca, no Rio, que tem o Corcovado e o Cristo Redentor. As cataratas, incluídas entre as sete maravilhas naturais do mundo, receberam 1,9 milhão de visitantes no ano passado, procedentes de 180 países, gerando uma receita de R$ 211,7 milhões, dos quais R$ 14,8 milhões foram para o instituto.

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O ICMBio esclareceu que a decisão judicial não altera a administração do Parque Nacional do Iguaçu nem interfere na sua arrecadação. "A decisão trata apenas de uma questão fundiária, referente à propriedade de parte do Parque Nacional do Iguaçu. Ela não desconstitui a Unidade de Conservação Federal e nem passa sua gestão, ou qualquer recurso oriundo dela, para o Estado do Paraná", afirmou o instituto.

O órgão reforçou que somente uma lei federal poderia mudar o status da unidade de conservação. A decisão, segundo o instituto, não afeta as regras de preservação ambiental da área. Embora a área em disputa seja de pouco mais de mil hectares, o parque todo possui 169 mil hectares, na fronteira com a Argentina.

Já a gestão local do parque diz, em nota, que a decisão do TRF focou apenas o interesse econômico, sem levar em conta os contratos que envolvem a gestão de toda a unidade. "Entendemos que isso tornaria os contratos nulos, causando imensos transtornos à operação turística, que precisaria ser interrompida até que a desafetação da área seja completada para que o Estado assuma a gestão do território." Ainda segundo a gestão, se não for revista, a medida pode prejudicar o turismo internacional.

Além das cataratas e do hotel, o parque abriga 390 espécies de aves, 175 de peixes e 158 de mamíferos, inclusive uma das maiores populações de onças-pintadas que ainda vivem livres no Brasil. O animal é o símbolo do parque. A unidade de conservação tem a estrutura atual desde a retirada do último grupo de colonos, em 1978.

AGU vai recorrer

A AGU (Advocacia-Geral da União) anunciou que vai recorrer da decisão. A União alega que o território sempre foi federal, desde o período imperial, e que a concessão a Jesus Val não envolveu transferência de propriedade, somente a posse do terreno. Também argumenta que o Decreto nº 1.035/1939 determinou que todas as terras estaduais essenciais para a constituição do Parque Nacional do Iguaçu fossem incorporadas à União. "A decisão ignora o fato de que o parque foi criado por um decreto federal, que previa a incorporação dessas terras ao patrimônio da União", afirmou a AGU em nota.

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A reversão da decisão é possível, já que as instâncias superiores analisarão a titularidade da terra e a validade das transações históricas, explica Fábio Soito, advogado consultor especializado em Direito Público. Ele ressalta não haver precedentes diretos semelhantes, tornando o caso relevante para futuras disputas fundiárias em áreas protegidas.

O advogado também alerta para possível efeito cascata, em que outros estados passem a questionar a titularidade de terras em parques nacionais e unidades de conservação federais. "Se outras reivindicações forem aceitas, pode haver um risco de fragmentação na administração dessas áreas", afirma. "Isso pode levar à necessidade de novas regulamentações ou até modelos de gestão compartilhada, como os chamados 'mosaicos de áreas protegidas', que conciliam diferentes níveis de governança para evitar conflitos e garantir a conservação ambiental".

*Com Estadão Conteúdo