Garoto mata e é preso em 'Adolescência'; e se o crime ocorresse no Brasil?

Na série Adolescência, da Netflix, um menino de 13 anos mata uma colega em cena gravada em vídeo; no Brasil, mesmo com prova irrefutável, ele não poderia ser preso, explicam especialistas.

O que aconteceu

Na trama de "Adolescência", um vídeo mostra um menino de 13 anos matando brutalmente uma colega da escola. A gravação, feita por câmeras de segurança, registra o garoto levando a menina até um local isolado, onde a ataca e a deixa caída no chão. Mesmo sendo um adolescente, o garoto é preso.

No Brasil, um garoto de 13 anos que comete homicídio não pode ser preso. Mesmo com prova irrefutável, como a gravação do crime, a responsabilização penal só ocorre a partir dos 18 anos. "Aos 13, ele pode ser responsabilizado por ato infracional — não como criminoso, mas conforme diretrizes do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)", explica Arthur Richardisson, advogado criminalista e conselheiro do CNPCP, órgão do Ministério da Justiça responsável por propor diretrizes para a política criminal e penitenciária no país. A advogada Vanessa Paiva, especialista em direito de família e sucessões, complementa que adolescentes entre 12 e 17 anos estão sujeitos a medidas socioeducativas, não a penas do sistema penal comum.

A internação é a medida mais severa, mas não se confunde com prisão. Prevista no artigo 122 do ECA, a internação pode ser aplicada quando há grave ameaça ou violência à pessoa. "Mas é preciso reafirmar que a internação é exceção legal, não regra", diz Richardisson. A medida deve ser revista a cada seis meses, segundo o art. 42 da Lei do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), e não pode ultrapassar três anos. Em 2024, 159 adolescentes de 13 anos cumpriam medidas privativas de liberdade no Brasil, segundo dados oficiais.

A existência de vídeo do crime pode acelerar o processo, mas não muda a natureza jurídica do caso. "Ainda que o vídeo comprove o fato, ele não autoriza exceções à proteção legal da infância", afirma o advogado. Vanessa Avellar Fernandez, advogada criminalista, reforça que o juiz pode usar o vídeo para fundamentar a medida aplicada, mas reforça que todas as decisões estão limitadas pelas diretrizes do ECA.

Crianças e adolescentes recebem tratamentos jurídicos distintos. Crianças até 12 anos incompletos recebem apenas medidas de proteção (art. 101 do ECA), enquanto adolescentes de 12 a 18 podem ser submetidos a medidas socioeducativas (art. 112). Fernandez observa que a abordagem é distinta da Justiça comum e foca na reeducação. "O Estado deve ser cuidador para as crianças e educador para os adolescentes", resume Richardisson.

As unidades de internação são voltadas à ressocialização, mas a prática é outra. "No papel, tudo é voltado à reeducação. Mas a realidade brasileira é outra: há superlotação, denúncias de tortura e violações de direitos", afirma Richardisson. Segundo o Levantamento Nacional do Sinase 2024, 72,3% das unidades possuem espaços para profissionalização, 83% para prática esportiva e 88,7% para atividades culturais. Mas os índices de evasão, reincidência e baixa adesão às atividades revelam fragilidades profundas no sistema.

Responsabilização dos pais

A família da vítima pode buscar reparação na Justiça cível, mas há barreiras. A responsabilização dos pais ou responsáveis por danos causados por adolescentes é prevista no artigo 932 do Código Civil e também no ECA, que estabelece a obrigação de reparar o dano em atos infracionais com reflexo patrimonial. "Mas 20,5% das famílias dos adolescentes internados vivem com até um salário mínimo, o que dificulta ações de indenização", aponta Richardisson. "Do ponto de vista penal, não há punição possível — e isso não é falha, é escolha civilizatória", completa.

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Casos extremos já levaram adolescentes de 13 anos à internação. Em 2024, 159 adolescentes dessa idade estavam privados de liberdade. "O endurecimento judicial costuma ocorrer quando há comoção social, mas o Judiciário deve resistir à pressão por punição exemplar e agir com base nos direitos fundamentais", afirma o advogado. Paiva confirma: "O Judiciário tende a aplicar a internação nesses casos, considerando a gravidade do ato".

O sistema busca recuperar, educar e reintegrar, mas muitas vezes falha. "Na prática, há um abismo entre o discurso e a realidade", avalia Richardisson. Dos adolescentes internados em agosto de 2024, apenas 35,6% cumpriram integralmente a medida; os demais foram desligados por substituição, evasão ou motivos não especificados. "Punir uma criança pode até satisfazer momentaneamente o desejo de justiça, mas não resolve o problema estrutural da violência juvenil."

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