Escola questiona lanche de criança celíaca e sugere que ela fique sem comer
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O diagnóstico de doença celíaca, que impede a ingestão de alimentos que contenham glúten, chegou em novembro de 2023. Desde então, Tayrine Novak, 33, moradora de Araucária, no Paraná, enfrenta dificuldades para garantir que a filha Thaylla, de 9 anos, tenha acesso à dieta adequada na escola.
De início, o sentimento é de descoberta, de ajudar seu filho a passar por isso de forma mais leve, mas quando a gente procura o poder público e vê que não será possível, e vão excluir de todas as formas os celíacos, isso é revoltante.
Tayrine Novak
O que aconteceu:
Thaylla estuda em período integral na Escola Municipal Professora Egipciana Swain Paraná Carrano. A unidade oferece cardápio específico para celíacos, conforme determina a legislação, mas, segundo a mãe, em abril do ano passado, alterações nos exames da menina demonstraram a possibilidade de contaminação cruzada — quando há erro na manipulação do alimento e traços de glúten ficam presentes —, o que pode agravar o estado de saúde de quem convive com a doença.
De posse de laudo médico atestando que a criança não poderia ingerir alimentos com glúten e que as refeições deveriam ser preparadas em casa, a mãe combinou com a escola que enviaria as marmitas da filha.
Em setembro, o Conselho de Alimentação Escolar acionou o Ministério Público do Paraná contra a mãe, argumentando que a mesma não enviava alimentação conforme o cardápio da escola. Em reunião na promotoria, Tayrine explicou a situação e que houve melhora no quadro de saúde da filha após as refeições passarem a ser preparadas por ela em casa.
Na ocasião, a promotora de Justiça determinou que houvesse diálogo entre as partes "sempre com foco na saúde da criança" e que a escola enviasse, às sextas-feiras, o cardápio da semana seguinte para que a mãe se preparasse.
Em outubro, Tayrine abriu reclamação na Secretaria Municipal de Educação de Araucária (Semed) informando que a escola não estava cumprindo o acordo com o Ministério Público de enviar previamente o cardápio, e foi estabelecido que seria encaminhado por email.
Bolo de cenoura virou discussão
No início do mês, um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate deu novo ingrediente à luta de Tayrine. A mãe de um estudante enviou mensagem à escola reclamando que a menina levou a iguaria e o seu filho ficou com vontade. A direção orientou-a formalizar o relato na Ouvidoria da Semed.
Via WhatsApp, a Semed convocou Tayrine para uma reunião, na manhã do dia 7 de abril, mas não informou o assunto que seria tratado. Sozinha, a mãe compareceu ao encontro, que contou com a presença de seis servidores da Educação, entre eles a diretora e a vice-diretora da escola, uma nutricionista e o chefe de gabinete da pasta, Eduardo Schamme.
Durante a reunião, Tayrine foi questionada sobre a cobertura do bolo, que não estaria de acordo com o cardápio da escola. A mãe informou que se adapta conforme o que tem em casa e as condições econômicas da família, e que fez a calda de cacau para que a filha pudesse ingerir melhor o alimento, que é muito seco.
O chefe de gabinete disse que Tayrine não segue a legislação: "A lei é muito clara, o alimento precisa ser semelhante e não destoar, não é o que você quer". A mãe rebateu dizendo que acompanha resolução federal que permite bolo, desde que não seja industrializado.
Uma das participantes da reunião sugeriu a possibilidade de a criança não comer na escola quando a mãe não puder seguir o cardápio.
A conversa, que durou aproximadamente uma hora, foi gravada por Tayrine, que postou trechos nas redes sociais.
Me senti oprimida e vulnerável. Estavam ali seis pessoas contra e só eu a favor da Thaylla. A hora que o chefe de gabinete fala 'uma lei a mais, uma lei menos' você acaba se sentindo uma palhaça de estar ali só escutando o que eles têm a impor, e tudo o que você fala sobre a sua filha e a doença dela eles não escutam. Não querem saber se a família tem condições financeiras e psicológicas.
Tayrine Novak
A mãe complementa: "O sentimento é de revolta por não conseguir fazer com que a criança celíaca tenha o direito de se alimentar, como foi insinuado para ela comer em casa ou ser excluída em outra sala. A gente só procura o direito de igualdade e inclusão."

Apoio jurídico
O teor da reunião, repercutido por meio dos vídeos nas redes sociais, chamou a atenção dos advogados Daniel J. Kaefer, Eder Fior e Eduardo Càrdoso Kivel, de Brasília (DF), que ofereceram apoio jurídico à família.
"Manifestamos profundo repúdio à utilização da máquina pública como instrumento de opressão contra cidadãos em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência econômica. Em vez de acolhimento, empatia, solidariedade e inclusão — princípios basilares da Administração Pública, especialmente no ambiente escolar —, presenciamos a distorção da função estatal em afronta direta à dignidade humana", informa a nota.
A defesa diz ainda que "todas as medidas legais e cabíveis estão sendo adotadas, incluindo representações administrativas, atuação junto ao Ministério Público e estudo de eventual ação judicial visando à responsabilização dos envolvidos e à garantia plena dos direitos da menor e de sua família".
No dia 22, após a repercussão do caso, um boletim de ocorrência foi registrado contra uma professora de Thaylla que, segundo a família, teria constrangido a criança em sala de aula ao fazer uma piada alusiva às postagens da mãe nas redes sociais. "O bullying foi provocado por uma professora, a que ela mais gostava da escola", conta Tayrine.
Empatia
Desde que publicou os vídeos nas redes sociais, Tayrine tem recebido diversas mensagens. "Existem muitas famílias e celíacos que passaram por situações piores ou que estão passando. Estou recebendo relatos absurdos", disse.
Entre as principais dificuldades da vida de um celíaco está a aquisição de alimentos sem glúten.
"Uma pessoa normal pode ir na panificadora logo cedo comprar pãozinho quentinho. Para o celíaco é mais difícil, os alimentos são caros. Um pacote de pão normal, com trigo, pode ser encontrado por R$ 3,50 na promoção. Já o pão para celíaco é metade desse pacote e custa entre R$ 28,00 e R$ 36,00", disse.
Tayrine disse que é preciso mais empatia: "Não é uma dieta por escolha. O celíaco não tem opção, faz para ter saúde ou pode vir a óbito. Espero que as pessoas olhem para o próximo sem julgar e que tenham leis mais firmes para que, quando ocorra com uma mãe o que está ocorrendo comigo, as pessoas sejam punidas. Qual mãe não quer saúde para o filho?"
Outro lado
Questionada sobre a situação, a Prefeitura de Araucária informou que a rede municipal de ensino atende atualmente mais de 18 mil estudantes (14 diagnosticados com doença celíaca) e que oferta 46 cardápios diferentes, elaborados por nutricionistas e adaptados às mais variadas restrições alimentares.
A nota diz ainda que durante a reunião foram oferecidas diversas alternativas à mãe da estudante celíaca, como consumir os alimentos já disponibilizados pela escola no cardápio especial para celíacos; fornecer os ingredientes para o preparo doméstico; permissão para levar alimentos de casa, caso não fosse possível, a criança fazer as refeições em um espaço separado, considerando o contexto social — já que parte dos alunos não tem condições de levar refeições diferenciadas. No entanto, a mãe não concordou com as opções sugeridas e, "ao invés de procurar um entendimento que fosse razoável para todos, preferiu postar trechos da reunião nas redes sociais."
A administração municipal disse também que será aberta sindicância para apurar o relato de eventual contaminação cruzada — mesmo sem qualquer registro anterior desse tipo de ocorrência na rede — e que estão sendo planejadas ações de conscientização para pais, professores, servidores e alunos, com foco em educação alimentar, acolhimento e respeito às condições individuais.
Sem anticorpos
A doença celíaca é uma doença imunológica que ativa fatores inflamatórios quando ocorre a ingestão do glúten (trigo, cevada, centeio), podendo causar lesões na mucosa intestinal e síndrome de má absorção. Em casos mais graves, pode levar à morte.
"A pessoa não desenvolve anticorpos e, pela má absorção, pode desenvolver anemia, desnutrição, irritação de pele e prurido, baixa de cálcio e osteoporose, déficit em crescimento, dores articulares (na fase adulta) e, inclusive, morte", explica o médico Paulo Boarini, especialista em cirurgia geral e coloproctologia.
Entenda a doença
- É autoimune, ou seja, o corpo entende que o alimento com glúten é uma ameaça e começa a atacá-lo. O intestino fica inflamado na presença dessa proteína encontrada em alimentos como trigo, cevada, centeio, aveia, e não consegue absorver os nutrientes.
- Por isso, entre os sintomas, muitos pacientes relatam distensão abdominal, náusea, diarreia, constipação, dor de barriga, perda de peso e falta de apetite. Mas, em alguns casos, a pessoa pode ser assintomática.
- Para diagnosticar a doença, os médicos avaliam histórico do paciente, além de exames de sangue e imagem (endoscopia digestiva alta).
- O tratamento envolve dieta sem alimentos com glúten.
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