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Servidor contesta aposentadoria e denuncia isolamento e oferta de cura gay

Nilton diz que foi vítima de preconceito enquanto atuava como orientador social na prefeitura de Taubaté Imagem: Arquivo Pessoal

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

30/04/2025 05h30

Um servidor municipal de Taubaté (SP) afirma ter sido aposentado compulsoriamente por invalidez psiquiátrica após uma avaliação médica que, segundo ele, durou apenas seis minutos. Ele alega ter sido alvo de perseguição e discriminação por parte de colegas da prefeitura, onde atuava como orientador social desde 2018.

Em entrevista, o servidor relata anos de isolamento, assédio moral e tentativas de forçá-lo a pedir exoneração. O caso foi arquivado pelo Ministério Público de São Paulo sem abertura de investigação formal, agora, Nilton tenta reverter a aposentadoria compulsória com uma ação cível movida na Justiça contra a Prefeitura de Taubaté.

O que aconteceu

Desde que assumiu o cargo na administração municipal, Nilton Francisco Pereira dos Santos Silva, 47, percebeu que era tratado de maneira diferente. Ele afirma que era impedido de participar de reuniões de equipe e, enquanto seus colegas entravam na sala para discutir as diretrizes do serviço, era deixado do lado de fora, vigiando o portão. A discriminação se tornava mais explícita em episódios cotidianos. Em um dos casos, um usuário do serviço público esfregou a genitália no ombro de Nilton durante um atendimento. Quando relatou a situação à equipe, ouviu que a culpa era dele.

Me disseram que isso aconteceu porque eu 'dava pinta'. A solução foi que, toda vez que ele aparecesse no local, eu deveria me esconder no banheiro. Eu não sou um bicho para ser escondido. Sou um cidadão.
Nilton Silva

De acordo com o servidor, o assédio se manifestava também de outras formas, e uma de suas superiores hierárquicas, evangélica, chegou a sugerir que a igreja poderia ajudá-lo. "Ela me disse que minha vida poderia ser melhor se eu aceitasse um tratamento. Depois, foi mais incisiva: 'Não é de gripe que estou falando, você pode ser uma pessoa perfeita'", conta o servidor, demonstrando que seu modo de ser era tratado como uma doença. "Ela estava sugerindo que eu passasse por uma cura gay. Por eu ser feminino, não me respeitavam."

Nilton recusou a oferta de "cura gay", como ele diz, mas não pôde impedir o tratamento diferenciado, que se agravava com o passar do tempo. Ele menciona que sua aparência feminina e voz delicada foram alguns dos motivos pelos quais teria sofrido discriminação na Prefeitura de Taubaté. Além de ser impedido de desempenhar a função para a qual foi concursado, afirma ter sido realocado para tarefas que não correspondiam ao cargo de orientador social. Foi direcionado para a limpeza de prédios abandonados e, posteriormente, passou a permanecer ociosamente em ambientes isolados. "Ou eu aceitava ações de desvio de função, ou ficava no ócio absoluto", relata.

O servidor foi contratado como orientador social, mas tinha que exercer outras funções, como limpeza Imagem: Arquivo Pessoal

Aposentadoria compulsória

Em 2023, Nilton conta que fez duas avaliações médicas que o consideraram apto para o trabalho. No entanto, pouco tempo depois, foi afastado de suas atividades sem justificativa formal. Quando retornou, foi realocado para uma sala insalubre e sem função definida. "Meu trabalho passou a ser tirar grampos de resma o dia inteiro", conta.

Segundo o funcionário público, a mudança impactou diretamente sua saúde mental. Ele diz que passou a apresentar crises emocionais. Em um dos episódios, durante o expediente, disse em voz alta que não aguentava mais aquela situação. "Eu queria que Deus me levasse, porque eu não aguentava mais", desabafa.

Pouco tempo depois, foi chamado novamente para uma junta médica. Dessa vez, a decisão foi diferente. Em seis minutos, segundo ele, os médicos decretaram sua invalidez psiquiátrica permanente. Nilton diz que os profissionais não analisaram laudos prévios, como a ressonância magnética que comprovava sua aptidão, nem os documentos de especialistas que o acompanhavam.

O resultado foi sua aposentadoria compulsória, publicada no Diário Oficial do dia 6 de junho de 2024. "Se eu realmente fosse inválido psiquiatricamente, como consegui dirigir até São José dos Campos para minhas consultas? Como pago minhas contas?", questiona o orientador social, que ganhava cerca de R$ 1.900, mais benefícios que foram cancelados com a aposentadoria.

As mensagens de WhatsApp foram trocadas com uma supervisora do trabalho. Já a conversa pelo Facebook, segundo Nilton, foram direcionadas a uma servidora da secretaria de educação da cidade. Imagem: Arquivo Pessoal

Denúncias

Antes de ser afastado definitivamente, Nilton tentou denunciar a situação por diversos canais. Ele recorreu ao Ministério Público, à Câmara Municipal e ao sindicato dos servidores. Nenhum desses órgãos, segundo ele, interveio para impedir a aposentadoria forçada.

Em nota, o Ministério Público de São Paulo explicou que arquivou a denúncia, alegando falta de provas e afirmando que Nilton não indicou testemunhas para serem ouvidas. O servidor, no entanto, rebate essa justificativa. "O problema é que testemunhas têm medo de represálias. Como eu poderia indicar colegas, se eles viam o que estava acontecendo comigo e temiam sofrer o mesmo?", questiona.

Na Câmara Municipal, ele levou sua situação ao conhecimento de um vereador e participou de uma audiência pública sobre saúde mental, onde abordou a perseguição que sofria. No entanto, a Câmara alegou em nota que nunca recebeu uma denúncia formal sobre discriminação. "Denunciei de todas as formas que consegui. Mas não havia fiscalização, não havia um órgão isento para fiscalizar a Prefeitura", diz.

Sem respaldo municipal, Nilton recorreu a órgãos federais, como o Ministério dos Direitos Humanos. A pasta oficiou o Ministério Público de São Paulo — órgão que já havia decidido pelo arquivamento do caso. O Ministério dos Direitos Humanos foi procurado, mas não retornou o contato.

É como se não houvesse saída. Se isso aconteceu comigo, pode ter acontecido com outras pessoas. A prefeitura não pode usar o serviço público para promover preconceito, para promover inverdades, para perseguir servidores. Agora, com essa aposentadoria compulsória, como vou conseguir trabalho? Nem na iniciativa privada eu consigo mais.
Nilton Silva

Em nota, a Prefeitura de Taubaté afirma que a decisão de aposentadoria foi tomada com base em um histórico de afastamentos médicos, que somam 488 dias. "Não há registro de processos disciplinares ou administrativos contra Nilton antes de sua aposentadoria. Nenhuma denúncia interna de discriminação foi oficialmente protocolada, conforme a plataforma oficial de documentações do município".

Por sua vez, Nilton enfatiza que foi afastado em novembro de 2022 por saúde mental fragilizada e problemas renais que exigiram cirurgia. Segundo a defesa, seu estado piorou com más condições no trabalho, como banheiros insalubres, o que agravou crises de ansiedade. Apesar disso, em março e maio de 2023, foi considerado apto pela junta médica. Retornou em ambiente inadequado. A psiquiatra de Nilton, no entanto, recomendava que ele fosse alocado em ambiente ventilado e com janelas, devido ao desenvolvimento de claustrofobia. Ele diz que foi colocado em uma sala apertada e sem janelas. Em dezembro, foi declarado permanentemente inapto e indicado à aposentadoria compulsória, decisão que contesta na Justiça.

O MP também afirma que realizou diligências antes de arquivar o caso. Segundo a Promotoria de Justiça de Taubaté, Nilton foi cientificado das decisões, que foram homologadas pelo Conselho Superior do MPSP. O órgão declarou que o servidor sempre se manifestou por escrito e nunca indicou testemunhas para serem ouvidas. "Quanto à aposentadoria, ele foi orientado a tratar a questão judicialmente", informou a promotoria, acrescentando que não recebeu outras denúncias semelhantes na prefeitura.

Nilton, no entanto, contesta a atuação do MP. "Arquivaram meu caso sem ouvir ninguém. Nem minha psiquiatra foi procurada. Eu denunciei por todos os meios que pude", afirma. Ele também diz que colegas tinham medo de represálias, por isso não se sentiram seguros para testemunhar formalmente. A Promotoria, por sua vez, destacou que novas provas podem ser apresentadas, desde que contenham fatos novos e relevantes.

A Câmara Municipal sustenta não ter recebido denúncia para abertura de investigação. "Se em algum momento o servidor se sentiu discriminado, ele deveria recorrer ao Regime Disciplinar do Servidor (Lei Complementar 1/1990). O artigo 255 desta norma determina, no inciso XII, que o servidor é obrigado a representar contra a ilegalidade ou abuso de poder, e esta representação é obrigatoriamente apreciada pela autoridade superior àquela contra a qual é formulada, assegurando-se ao representado o direito de defesa", diz trecho da nota.

Colega confirma maus-tratos

Um ex-colega de trabalho de Nilton, que atuava na mesma função de orientador social, confirmou ao UOL que ele era tratado de forma diferente na Prefeitura de Taubaté. "Mesmo que estivéssemos no mesmo setor, fazíamos o mesmo trabalho e tínhamos a mesma função, mas a chefia passava orientações só para mim, ignorando ele completamente", revelou o homem, que não quis se identificar.

Além do isolamento, Nilton era submetido a tarefas incompatíveis com seu cargo. "Ele fazia café, limpava o local e até recebia ordens para varrer e faxinar, enquanto os demais cumpriam suas funções conforme o edital", afirmou. Em um dos episódios mais graves, o colega relata que Nilton foi trancado em um setor, impedido de sair porque a coordenadora e uma funcionária levaram a chave ao sair do prédio.

O funcionário também questiona a justificativa da aposentadoria compulsória de Nilton. "Conheço ele há anos e ele tem plena autonomia, dirige, raciocina bem, sabe o que faz. Ele não é interditado. Para mim, isso foi um jeito da prefeitura se livrar dele", concluiu.

TJ-SP pede perícia

Depois da decisão da junta médica, Nilton acionou o Judiciário para tentar reverter a aposentadoria compulsória. O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) negou a suspensão imediata da aposentadoria de Nilton. Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo, a reversão da medida só poderá ser analisada após a produção de prova pericial, etapa considerada indispensável para o julgamento do mérito da ação. A perícia foi requisitada ao Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo), mas ainda não há previsão de quando será realizada. A decisão reforça que o retorno ao cargo depende da conclusão dessa avaliação técnica, além dos demais elementos probatórios já incluídos no processo.

Nilton teme que esse tipo de perícia demore muito. Até lá, ele terá de conviver com as dificuldades financeiras pela redução do salário. "Se eu tiver que devolver o dinheiro que recebi enquanto estive aposentado, eu devolvo. Mas que me paguem também o salário que deixei de receber. O certo é o certo", argumenta.

O tribunal admite que não há controle específico sobre esse tipo de caso. De acordo com o TJ-SP, há precedentes envolvendo aposentadoria por invalidez, mas a modalidade "psiquiátrica" não é classificada separadamente nas tabelas processuais do Conselho Nacional de Justiça, o que dificulta a identificação de decisões semelhantes. Ainda assim, a corte afirma que existem julgados sobre a matéria. Para Nilton, essa falta de monitoramento institucional contribui para a perpetuação de abusos e dificulta o enfrentamento de discriminações estruturais no serviço público.

O servidor acredita que sua luta vai além do caso individual. "Nós precisamos de um órgão independente para fiscalizar irregularidades no funcionalismo público. Não pode ser terra de ninguém, onde os servidores estão à mercê do que a administração quiser fazer", diz.

Ele também espera que sua história leve outras vítimas a denunciarem situações semelhantes. "As pessoas têm medo de falar porque sabem que podem sofrer represálias. Mas é preciso falar. Se nós não falarmos, nada muda", conclui.

O UOL entrou em contato com o sindicato dos servidores municipais de Taubaté, mas não obteve retorno até a conclusão desta reportagem. O espaço segue aberto.

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