'Escolhido desde o ventre': crianças pregadoras fazem sucesso na internet

Nascidos em lares evangélicos e na era das redes sociais, os pregadores mirins têm ganhado espaço tanto na internet quanto nas igrejas evangélicas do país. Com desenvoltura diante dos microfones, palavras que surpreendem pela clareza e um entusiasmo tipicamente pentecostal, eles despertam emoções, reflexões — e também polêmicas.

Entre os nomes mais conhecidos desse universo estão Ester Souza, de 8 anos, e Moisés Andrade, de 13. Os vídeos de Ester e Moisés somam milhões de visualizações no Instagram, YouTube e TikTok — e os dois já até fizeram uma live juntos.

Ester Souza: uma pequena grande sobrevivente da fé

Com tão pouca idade, Ester Souza já viveu experiências que surpreendem até mesmo os adultos. Natural de Votuporanga (SP), filha do pastor Lucas Souza, ela começou a cantar na igreja em que o pai é pastor antes mesmo de completar 3 anos — e foi nessa mesma idade que enfrentou um dos momentos mais difíceis de sua vida. Em 2020, uma bactéria comprometeu seus rins, levando-a a uma internação de 87 dias, sendo 24 deles na UTI e 15 entubada. O diagnóstico foi duro: Ester perdeu completamente a função renal e passou por 11 meses de hemodiálise, até receber um novo rim em 10 de março de 2021. Depois do transplante, bastou apenas uma sessão de hemodiálise. E a menina que não podia nem se molhar hoje faz natação e ginástica duas vezes na semana — e corre, corre muito, como gosta de dizer, "pra gastar a energia".

Mas não foi só a saúde física de Ester que renasceu. Segundo ela e sua família, foi durante o período de internação que uma experiência sobrenatural transformou sua vida. Ester afirma ter tido um encontro com Deus no hospital, algo que, à primeira vista, os pais pensaram se tratar de imaginação. No entanto, a consistência e os detalhes com que ela conta a história os levaram a acreditar que realmente Ester havia vivido algo especial. "Ela fala que viveu uma experiência muito sobrenatural naquele hospital", diz o pai, que desde então viu a filha intensificar seu envolvimento com o louvor e a pregação.

Com mais de 429 mil seguidores no Instagram e mais de 1 milhão somando todas as redes sociais, Ester se tornou conhecida por suas mensagens curtas e cheias de fé — sempre com o apoio dos pais. Sua prima, Vitória Souza, também ganhou fama com vídeos de pregação, sendo hoje uma das referências da menina na música gospel, ao lado de Maria Marçal. Como pregadores favoritos, ela aponta, em primeiro lugar, seu pai, e em segundo, o pastor Leonardo Sale.

Apesar do sucesso, o cotidiano da pequena pregadora tem as limitações e cuidados próprios da infância. O pai garante que impõe restrições rigorosas quanto à saúde e à educação: atualmente, as viagens para ministrações não ultrapassam 200 km de distância e jamais ocorrem em dias de aula. "Jamais vou sacrificar um dia de aula por uma agenda", diz ele, que faz questão de destacar que a filha é uma excelente aluna e mantém uma rotina organizada, que inclui natação, ginástica e um tempo reservado para o devocional. "Eu faço meu devocional. Leio a Bíblia todos os dias e preparo minhas mensagens", conta Ester, que tem como texto bíblico favorito o Salmo 23 e ama a história do rei Davi.

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Sobre a polêmica envolvendo a pregação de crianças nas igrejas, o pai e pastor Lucas pondera: "Com certeza, uma criança não está apta para ensinar, mas, a nível de uma mensagem evangelística ou profética, eu não vejo problema nenhum". Ele ressalta ainda que a filha nunca foi convidada como "pregadora oficial" de um culto e que suas mensagens, em média, duram cinco minutos. "A Ester não tem isso [de revelações para viralizar e falsas profecias]. Ela tem muita revelação, sim, mas dentro da Palavra", afirma.

Apesar de não ter celular e não acessar diretamente suas redes sociais, Ester gosta de assistir aos vídeos do canal Superbook (desenho animado com histórias bíblicas) e ver conteúdos da influenciadora Emilly Vick. Com um jeito meigo e ao mesmo tempo cheio de energia, ela se descreve como "a menina que desde criancinha já fala da Palavra de Deus" e não esconde seus sonhos: quer ser pregadora, talvez também cientista que pesquisa sobre animais e, claro, um dia ir para a Disney.

Moisés Andrade: 'Escolhido desde o ventre'

Com 13 anos, Moisés Andrade fala com a firmeza de quem carrega no peito uma missão. Natural de João Pessoa (PB), o menino de sorriso tímido e discurso cheio de entusiasmo diz ter recebido um chamado de Deus quando tinha apenas seis anos de idade. "Deus colocou no meu coração e falou: 'Moisés, eu te escolhi desde o ventre da sua mãe. Eu te escolhi para adorar e glorificar o meu nome'", lembra com nitidez o adolescente, que se tornou conhecido nas igrejas pentecostais por suas mensagens curtas, fervorosas e cheias de citações bíblicas.

A história de Moisés, assim como a de Ester, inclui desafios com sua saúde. Ele nasceu com problemas respiratórios e passou 1 mês e 16 dias internado na UTI. Sua mãe, conta Moisés, diante do risco e do medo de perder o filho recém-nascido, fez um voto com Deus: se ele sobrevivesse, ela o consagraria ao Senhor. Moisés não apenas sobreviveu, como se tornou, anos depois, um jovem pregador e cantor gospel com milhares de seguidores nas redes sociais - no Instagram, ele conta com 460 mil seguidores.

Helena Andrade Silva é mãe solo de Moisés e de mais uma criança. Como a maioria das mães que vive essa realidade no país, Helena precisa se dedicar a dois empregos — às vezes mais, afirma Moisés — e é uma grande incentivadora e referência para o filho. Moisés foi acompanhado na entrevista por seu produtor, já que a mãe estava em um de seus trabalhos, como serviços gerais. A relação com o pai, que tem mais quatro filhos, no entanto, é distante e com pouco envolvimento.

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O apoio da família é fundamental. A avó é mencionada como exemplo de fé e oração. Já a mãe e a tia, que o acompanham nas viagens, estão ao seu lado em cada passo. Desde que foi descoberto por Robson Ribeiro, da RN Gospel, Moisés passou a ser agenciado e contou com apoio para mudar de escola e ter acompanhamento mais próximo. Hoje, ele estuda em uma escola particular com mensalidades cobertas pela produtora e afirma com orgulho: "Sou um bom aluno, não converso durante a aula, sento na frente".

Moisés é torcedor do Náutico e do Barcelona, gosta de andar de bicicleta e jogar bola com os amigos. Ou seja, fora do púlpito da igreja, garante viver normalmente como qualquer criança de sua idade.

Na escola, sua matéria preferida é ciências, enquanto geografia e matemática não o encantam tanto assim. Além de pregador, está investindo na carreira musical. Já lançou a canção "Deixa Ele te guiar" e prepara para maio a nova música, "Escolhido para Adorar", ambas escritas por seu produtor.

Diz usar uma Bíblia de Estudo para preparar suas mensagens, que duram, em média, nove minutos. Antes da entrevista, contou ter lido Mateus 4 — a tentação de Jesus no deserto. Seu texto bíblico favorito, que recita com facilidade, é o Salmo 91. Entre suas principais referências estão o pastor José Carlos de Lima, conhecido nome da Assembleia de Deus e seu conselheiro espiritual, além dos cantores Jefferson Rufino e Fernandinho.

Os convites para ministrar chegam de várias partes do país, mas a agenda de Moisés é cuidadosamente organizada. Segundo Robson Ribeiro, ele não participa de eventos em épocas de prova e não assume o papel de pregador principal. O produtor reforça: "Não é a mensagem principal, ele ainda não tem um curso de teologia". O menino, que ainda nunca andou de avião, está animado com a primeira viagem interestadual marcada para setembro, quando vai pregar no interior de Minas Gerais.

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As críticas ao fato de crianças pregarem não o abalam. O produtor, com quem caminha junto, rebate: "Deus fez até uma jumenta falar, então por que não uma criança? Por que duvidar da unção das crianças?".

Quando questionado sobre quem ele é, Moisés não hesita: "Sou um pregador da Palavra de Deus, canto louvores e sou grato a Deus por tudo que Ele fez por mim". Sobre o futuro, sonha em ser pastor, mas, se isso não acontecer, gostaria de ser advogado. Seu maior desejo? "Ver minha família feliz, comprar uma casa para minha mãe e viajar o mundo pregando".

Embora as histórias de Ester e Moisés encantem e mobilizem multidões, teólogos e estudiosos chamam atenção para os riscos dessa exibição precoce e do lugar simbólico que as crianças ocupam nesse contexto.

Riscos à infância e uso inadequado da religião e da teologia

Para Kenner Terra, pastor batista e doutor em Ciências da Religião, a figura do pregador mirim desperta preocupações importantes. Ele ressalta que a experiência religiosa sempre teve em seus proclamadores uma fonte significativa de orientação espiritual, mas pondera: "Mesmo que a capacidade do pregador não seja medida por sua idade, é comum que uma criança não tenha a formação necessária para ocupar esse lugar, o que sempre representará um risco, especialmente para a criança que está numa fase que exige cuidados e proteção."

Kenner chama atenção para o fato de que o fenômeno envolve diferentes faixas etárias, que vão desde crianças de 8 ou 10 anos até adolescentes. "Quanto mais jovem, menor o repertório, o que acaba levando-os à imitação dos adultos. Repetem a voz, a roupa e até os trejeitos", observa. Segundo ele, esse comportamento pode gerar distorções da própria infância: "Certa vez, ouvi um menino de 8 anos no púlpito, de gravata e terno, falando em adultério e infidelidade conjugal. Isso é no mínimo um tipo de desconfiguração da infância."

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Ele também alerta para os efeitos teológicos e pedagógicos do fenômeno. Ao ocupar um lugar de autoridade no ambiente religioso, mesmo sem maturidade ou base sólida de formação, as crianças acabam reforçando ideias com pouca profundidade teológica ou até com erros interpretativos. "Obviamente, isso não é exclusividade dos pregadores mirins", pondera Kenner. "Mas acredito que o fenômeno represente certos riscos, alguns deles já percebidos publicamente."

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