Aula com mitologia gera demissão de professor em SP: 'Fui acuado e exposto'

Um professor de História pediu demissão de uma escola municipal em Ilhabela, litoral de São Paulo, após sofrer críticas públicas de um vereador e pressão institucional por uma aula sobre o tempo, ilustrada com mitologias africana e grega.

O que aconteceu

César Augusto Mendes Cruz, doutorando em história, se desligou da Escola Municipal Major Olímpio após ter sua aula criticada em plenário e questionada por famílias religiosas. A atividade, voltada a alunos do sexto ano, abordava o conceito de tempo em diferentes culturas, com referências afro-brasileiras, arte europeia e música popular. O caso gerou manifestações de repúdio de entidades acadêmicas e sindicais, que acusam a Prefeitura de omissão e censura pedagógica.

A aula usava o mito iorubá de Irokô para apresentar o tempo como símbolo cultural. O professor também trouxe a narrativa do titã Cronos e três obras de arte que retratam o tempo como figura masculina idosa: uma pintura de Goya, uma de Rubens e uma de Jacopo del Sellaio. A atividade terminou com a canção "Oração ao Tempo", de Caetano Veloso. "Quis mostrar que cada cultura pensa o tempo à sua maneira", disse.

Dias depois, César foi convocado para uma reunião com o alto escalão da SME (Secretaria Municipal de Educação). Segundo ele, o encontro ocorreu sem aviso prévio e contou com o secretário adjunto, o assessor jurídico, coordenadoras e a gestão escolar. "Entrei na sala sem celular, sem testemunhas, sem saber do que se tratava. Fui surpreendido e inquirido por seis pessoas", relata. Ele afirma que estaria sendo criticado por pais inconformados com o conteúdo da aula.

O professor tentou obter cópias da ata da reunião e das reclamações, mas não teve retorno. "Protocolei três documentos formais, com base na Lei de Acesso à Informação. A Secretaria ignorou os prazos legais e nunca respondeu", afirma. Ele também pediu retificação da ata e diretrizes sobre como abordar conteúdos afro-brasileiros, mas só teve resposta parcial semanas depois.

Discurso de vereador

A aula foi criticada em discurso do vereador Gabriel Rocha (PL), na tribuna da Câmara. Ignorando os demais conteúdos, o parlamentar concentrou sua fala na pintura "Saturno devorando um filho", de Francisco Goya. "Essa aula foi dada para crianças de dez anos. O que estão aprendendo é sobre um quadro libidinoso e perturbador", disse. Rocha leu trechos de uma análise psicanalítica que falava sobre "impotência sexual" e "horror canibal". "O professor que causou isso depois ainda teve a coragem de ir à Câmara fazer denúncia contra os gestores que só quiseram conversar", completou.

Na mitologia grega, Cronos devora os filhos para evitar ser destronado, segundo uma profecia. A pintura de Goya, de 1819, representa esse mito com traços sombrios e dramáticos — e foi um dos exemplos visuais apresentados em aula.

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O vereador elogiou a gestão municipal e pediu ação de entidades externas. "Parabéns à secretária de Educação pelo pulso firme", disse. Ele também convocou apoio da OAB e do Conselho Tutelar para acolher os pais. Não mencionou o mito de Irokô, a canção de Caetano nem as outras obras analisadas na atividade.

Gabriel Rocha tem 43 anos, é fisioterapeuta, cursa Direito e foi o mais votado da legenda nas últimas eleições. Nascido em São José dos Campos, idealizou a implantação das escolas cívico-militares em Ilhabela. Em seu perfil na Câmara, se apresenta como alguém com "visão progressista".

"Saturno Devorando Seu Filho", do pintor Francisco Goya
"Saturno Devorando Seu Filho", do pintor Francisco Goya Imagem: Reprodução

Exposição e repercussão

Após o discurso, o professor afirma que passou a ser alvo de ataques em redes sociais e grupos religiosos. "Meu nome foi parar em grupos de WhatsApp de pastores, minhas redes sociais foram rastreadas por familiares de alunos", relata.

César diz que a manifestação do parlamentar agravou a sensação de perseguição. "Ele apagou tudo o que havia de pluralidade, de repertório. Reduziu uma aula inteira a uma imagem tirada de contexto, para fazer parecer que eu estava ali para chocar ou perturbar. Não foi uma crítica pedagógica. Foi um ataque político e ideológico", afirma. "Foi essa fala que alimentou a rede de ataques e a sensação de que eu estava sozinho".

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Conteúdo referendado

O conteúdo da aula foi referendado pela Anpuh-SP, entidade que representa os historiadores no Estado. Em nota publicada nas redes, a associação disse que a aula estava em conformidade com a BNCC, o Currículo Paulista e a Lei 10.639/2003. A Anpuh repudiou o que chamou de "obstrução do trabalho como historiador" e "interferência irregular da administração escolar".

A Apeoesp, sindicato dos professores, também divulgou nota de repúdio. A entidade criticou a adesão da gestão às pressões de "famílias desinformadas" e comparou o episódio à lógica de propostas como "escola sem partido". Disse ainda que o conteúdo fazia parte do currículo oficial e defendeu a liberdade de cátedra.


O Coletivo Popular de Educação de Ilhabela afirmou que acompanhou com preocupação a condução do caso envolvendo o professor César Augusto Mendes Cruz. Segundo o grupo, a convocação do docente para uma reunião com a Secretaria Municipal de Educação ocorreu sem aviso prévio e em condições assimétricas, violando protocolos da administração pública e gerando constrangimento institucional. A entidade criticou a falta de formalidade no registro da reunião e a amplificação do episódio em redes sociais e ambientes políticos, o que teria exposto indevidamente o professor e os alunos da escola cívico-militar onde ele lecionava.

Para o Coletivo, houve violação à liberdade de cátedra e omissão da gestão em garantir o contraditório. A entidade destaca que o professor tentou diálogo formal com a secretaria, mas recebeu como resposta a abertura de um processo administrativo disciplinar, sem escuta prévia. O grupo vê um avanço de pautas conservadoras nas escolas da região e atua como rede de apoio a docentes intimidados por pressões ideológicas, oferecendo escuta, formação e articulação coletiva. Segundo o coletivo, o ambiente educacional tem sido afetado por censuras, insegurança e falta de respaldo institucional.

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Modelo cívico-militar

A Escola Municipal Major Olímpio, onde ocorreu o episódio, segue diretrizes do modelo cívico-militar. A proposta pedagógica é baseada em disciplina rígida e valorização de "valores cívicos". O modelo foi idealizado pelo vereador Gabriel Rocha, autor das críticas ao professor.

Segundo o professor, o ambiente tornou-se insustentável após a exposição pública e a omissão institucional. Ele foi afastado por recomendação médica. "A confiança se rompeu. Sabia que não conseguiria mais entrar naquela sala de aula com segurança."

César pediu demissão definitiva da escola na sequência. Ele diz ter sido orientado pelo sindicato, mas optou por não entrar com ação judicial. "Fiquei doente. E não queria ser mais um educador adoecido num ambiente que normaliza o assédio."

Procurado pela reportagem, o vereador não respondeu até a publicação deste texto.

O que diz a prefeitura

Em nota, a Secretaria Municipal de Educação de Ilhabela (SME) informa que o professor de história foi convidado para um "diálogo interno" durante seu horário de trabalho pedagógico, após "manifestações formais" de famílias recebidas pela escola e pela SME. "O conteúdo ministrado está em conformidade com o Currículo Paulista e as preocupações referem-se à forma de abordagem adotada em sala de aula, e não ao conteúdo. Durante a reunião, o professor foi orientado quanto à adequação da linguagem com alunos de 10 anos, reconhecendo que algumas expressões podem ter gerado interpretações divergentes", afirma a Secretaria.

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Segundo a SME, o professor "recebeu apoio técnico e jurídico" e todas as medidas adotadas buscaram "preservar a integridade dos envolvidos e evitar desinformações, mesmo o professor tendo buscado exposição na mídia sobre o caso. "Em respeito à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e ao sigilo funcional, a SME não comenta publicamente processos administrativos, garantindo o direito à privacidade, à ampla defesa e ao contraditório, a fim de garantir a justiça e a imparcialidade, conclui.

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