'Psicóloga' de cavalos, ela desvenda traumas: 'Eles têm memória e emoções'

A veterinária e domadora Paolla Lucchin se apaixonou por cavalos à primeira vista, quando se deparou com um aos quatro anos.

Mais tarde, quando finalmente teve recursos para comprar o seu próprio, percebeu que os problemas de comportamento deles eram bastante comuns —e isso mudou os rumos de sua vida. Hoje, ela atua como espécie de "psicóloga de cavalos" —para ajudar os animais a superar seus traumas.

  • ENVIE SUA HISTÓRIA: acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Envie um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.

'Não compreendia a essência dos cavalos'

"Comprei uma égua no Jockey Club, onde era mais barato. Ela havia sido treinada apenas para correr em linha reta, sem saber parar. Além disso, apresentava diversos problemas de comportamento, que muitos consideravam normais", conta.

Ao tentar montar Rúnica pela primeira vez, percebeu que a égua apenas girava em círculos. Em uma das tentativas, ela disparou assustada, antes mesmo que Paolla conseguisse subir.

Diante daquele comportamento, decidiu procurar a ajuda de um domador, que em apenas um mês transformou completamente a atitude da égua.

Descobri que eu sabia montar, mas não compreendia a essência dos cavalos. Passei a estudar. Entrei na faculdade de veterinária visando compartilhar esse conhecimento com outros profissionais. Na universidade, não se aprende nada sobre doma e comportamento. Muitos traumas vêm, inclusive, do tratamento que os próprios veterinários oferecem ao animal.
Paolla Lucchin

Divulgando seus métodos nas redes sociais, Paolla passou a chamar a atenção de tutores e criadores, espalhando seus cuidados por todo o país. Ainda cursando a faculdade, começou a ganhar notoriedade como domadora, mas nem todos a levavam a sério.

Continua após a publicidade
Paolla Lucchin é domadora e ajuda cavalos a superarem traumas
Paolla Lucchin é domadora e ajuda cavalos a superarem traumas Imagem: Acervo pessoal

"Era uma mulher fazendo algo diferente no interior do Rio Grande do Sul, um estado muito tradicionalista. Acabava assustando as pessoas. Sou gaúcha, mas não uso as roupas típicas —prefiro o estilo americano, com jeans e camisa, que me deixa mais confortável. Existe muito preconceito, pois é um ambiente predominantemente masculino."

'Trauma é ressignificado'

O amor de Paolla Lucchin por cavalos começou na infância
O amor de Paolla Lucchin por cavalos começou na infância Imagem: Acervo pessoal

Com um método próprio, Paolla ajuda cavalos a superarem traumas e medos de forma delicada e assertiva, para deixarem de ver o mundo como uma ameaça. Mais do que uma domadora, ela atua quase como uma psicóloga para os animais.

"Todas as consultorias que realizo são voltadas para problemas comportamentais. É um processo de reabilitação. O trauma mais comum é o medo —de pessoas, de barulhos, de entrar em um caminhão de transporte", relata.

Continua após a publicidade

Os últimos cavalos com os quais trabalhou tinham entre 10 e 12 anos. Quando indagada se ainda vale a pena ajudar um animal com essa idade, Paolla faz uma analogia: "É como se fossem folhas escritas a caneta. Ao tentar corrigir algo, alguns rabiscos permanecem, mas ainda é possível reescrever."

Um trauma não é apagado, é ressignificado. Dependendo da intensidade, pode até se tornar imperceptível. Sempre haverá progresso, mas não posso prometer uma cura completa. Os cavalos têm memória e emoções, e a melhora depende disso também.
Paolla Lucchin

Essa "terapia" não tem um tempo determinado —tudo depende do animal e da profundidade do trauma. Em casos graves de maus-tratos, Paolla diz que nem sempre se sente no direito de apagar certas memórias, pois o animal tem o direito de sentir o que sente.

"Durante um curso, trouxeram uma mula de 12 anos que, sempre que era montada, era amarrada e tinha um saco colocado sobre a cabeça. Queriam que eu tirasse o medo dela de sacos. Ela passou dez anos sendo 'ensacada'. Os donos ainda cortaram sua orelha como forma de marcar que ela 'não prestava'. Como posso mostrar para ela que um saco é algo inofensivo?", questiona.

Esse não foi o único caso difícil que enfrentou. Em seus cursos, Paolla reforça a importância de compreender os tutores e escolher bem os clientes.

Trauma de perder a própria égua fez com que Paolla Lucchin focasse em ajudar cavalos com problemas
Trauma de perder a própria égua fez com que Paolla Lucchin focasse em ajudar cavalos com problemas Imagem: Acervo pessoal
Continua após a publicidade

"Um dos cavalos que eu atendia apresentava vários problemas, inclusive físicos. A dona queria que eu o medicasse para que pudesse competir. Eu e mais dois veterinários dissemos não. A dor tem uma função, precisamos compreendê-la. Poucos dias depois, ela me mandou um vídeo da prova. O cavalo correu machucado, com uma fratura na 'mão'", conta. Depois disso, ela "demitiu" a cliente.

Apesar dos desafios, Paolla recebe muito amor e carinho em troca do trabalho com os animais. "Os cavalos sempre foram meu suporte emocional. Fui atleta por dez anos, treinando quatro horas por dia. Quando precisava relaxar, eram eles que me traziam calma. Me emociono com eles."

Paolla Lucchin trabalha com doma em todo Brasil
Paolla Lucchin trabalha com doma em todo Brasil Imagem: Acervo pessoal

E já houve cliente que até chorou abraçada em Paolla após ver os primeiros resultados. "É emocionante demais ver os progressos. É muito bonito."

'Quero promover a autonomia'

Paolla diz que muitos cavalos traumatizados são tratados como se seus comportamentos fossem normais, mas não deveria ser sim. E mais pessoas deveriam saber reconhecer os comportamentos para tratá-los.

Continua após a publicidade

"Não é natural o cavalo empinar ou sapatear. Criei um curso sobre comportamento porque era algo de que eu precisava para trabalhar, e não existiam alternativas. Hoje, atuo em várias frentes para dar acesso à informação e promover a autonomia no cuidado com os cavalos", explica.

Paolla diz que tudo o que faz é por Rúnica —a égua que mostrou a ela qual profissão seguir. Rúnica morreu enquanto Paolla viajava pela Europa.

Perdi minha égua por negligência. Deixei tudo organizado --e até paguei valores extras-- no haras onde a Rúnica estava, para que fosse alimentada e exercitada. Mas ela teve uma cólica, e demoraram a perceber. Quando notaram, ela foi para a cirurgia, teve três paradas cardiorrespiratórias e não resistiu.
Paolla Lucchin

"Foi ela quem me colocou nesse caminho. Quando finalizei meu primeiro trabalho como domadora, ela morreu."

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.