SP já teve 'neve fake' em 1918 e o boato nunca derreteu; entenda
Do UOL, em São Paulo
16/06/2025 05h30
Fotos de São Paulo coberta por neve viralizaram nas redes sociais nos últimos dias. As imagens, claro, foram geradas por inteligência artificial. A brincadeira surgiu por causa das baixas temperaturas recentes, mas esse cenário quase se tornou realidade há mais de um século. Na madrugada de 25 de junho de 1918, São Paulo amanheceu coberta por uma fina camada branca. O episódio entrou para a história como o dia em que "nevou" na avenida Paulista, embora registros oficiais e análises meteorológicas indiquem que, naquela manhã gelada, o que caiu mesmo foi uma geada.
A "neve" de 1918
O frio era real — mas a neve, não. Naquela madrugada os termômetros marcaram impressionantes 3,2°C negativos na cidade de São Paulo. O chão amanheceu branco, mas não por flocos caindo do céu. Segundo os registros do antigo Observatório da Paulista, o fenômeno foi geada, causada pela sublimação do nevoeiro ao tocar o solo congelado.
Sem nuvens, sem neve e, segundo anotações dos meteorologistas da época, o céu estava limpo. E sem nebulosidade, não há como ocorrer precipitação de neve. A confirmação vem de registros preservados até hoje pelo IAG/USP (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo) e analisados por especialistas como a meteorologista Samantha Martins.
Essa temperatura, até hoje recorde na cidade, se repetiu em outras três datas — 6 e 12 de julho de 1942 e 2 de agosto de 1955. A informação é do IAG/USP, o instituto mais antigo do País a realizar medições meteorológicas de forma sistemática e contínua. As medições começaram em 1910.
À época, poucas pessoas em São Paulo conheciam a neve de fato. E foi assim que o imaginário popular completou o cenário. Ver um gramado coberto por cristais de gelo — em pleno Brasil — foi o suficiente para alimentar a fantasia. A memória afetiva do evento foi sendo passada de geração em geração, alimentando um dos mitos climáticos mais duradouros da cidade.
Caso virou folclore
Através de documentos e análise técnica, a tal "nevasca paulistana" foi desmistificada com precisão e clareza. Em seu blog Meteorópole, a meteorologista Samantha Martins detalha o que de fato aconteceu — sem, no entanto, tirar o charme de uma das madrugadas mais geladas (e lendárias) da capital.
Noite paulistana virou folclore e chegou à literatura. O escritor José Roberto Walker se debruçou sobre o episódio e encontrou referências ao frio extremo no diário coletivo de amigos de Oswald de Andrade. O episódio virou inspiração para o título de seu novo livro, Neve na Manhã de São Paulo, que resgata memórias do grupo modernista no centro da cidade.
Como é formada a neve?
Neve nasce dentro das nuvens e, sem elas, não tem como cair. Segundo a meteorologista Estael Sias, da MetSul, os flocos de neve se formam em nuvens rasas — diferentes das nuvens de temporal — a cerca de 1.500 metros de altura. É preciso uma camada atmosférica muito fria (abaixo de 0°C) para que o vapor d'água se transforme diretamente em cristais de gelo.
O frio no solo precisa acompanhar para que o floco chegue inteiro ao chão. Se o floco encontrar temperaturas mais altas no caminho ou mesmo se o ar tiver mais quente abaixo da nuvem, o gelo tende a derreter antes de tocar o solo — por isso a neve é tão rara no Brasil.
Chuva congelada, como aconteceu em SP de 1918, não é neve. Como explica Sias, a chuva congelada (ou granular) se forma inicialmente como chuva líquida, mas congela ao passar por uma camada fria próxima ao solo.
Já o granizo vem das tempestades. As pedras de gelo que caem em temporais se formam em nuvens muito mais altas (até 15 km). Elas são translúcidas e resultam de fortes correntes ascendentes dentro das nuvens, bem diferentes do processo de formação da neve ou da chuva congelada.
Clima brasileiro atrapalha a neve. No Sul do Brasil, até há temperaturas baixas o suficiente. Mas, como explica Sias, o frio intenso geralmente vem acompanhado de tempo seco — ou seja, sem nuvens.
*Com informações de reportagem do Estadão Conteúdo publicada em 08/08/2024