Showmícios: Como a música influencia eleições da redemocratização às lives
De Chico Buarque a Lobão, de Zezé Di Camargo a Beth Carvalho, campanhas políticas já renderam apoios dos mais inusitados aos mais fiéis, entre influentes ou polêmicos, mas os artistas sempre estiveram presentes, seja em um jingle, em um discurso no palanque ou em uma propaganda eleitoral.
Desde o final dos anos 1970, as eleições brasileiras estão intrinsecamente ligadas à presença de cantores e músicos. É difícil pensar na campanha das Diretas Já sem as celebridades. Hoje, este apoio foi levado à disputa digital e chega ao campo das lives.
"Durante as lutas pela redemocratização, essa participação foi bastante ativa, sensibilizando a sociedade civil à causa da importância do retorno à democracia e de resistência a qualquer forma de autoritarismo", afirma Rafaela Lunardi, doutora em história social pela USP (Universidade de São Paulo).
Democratização, o início
A possibilidade da retomada de eleições diretas à Presidência, governos estaduais e capitais —vetadas após o golpe militar de 1964— foi impulsionada pelos showmícios. Um exemplo da atuação dos artistas é o comício das Diretas Já em 1984, na praça da Sé, onde se estima que mais de 300 mil pessoas se reuniram para ver políticos e famosos.
Essa união se ampliou nos anos seguintes. Em 1985, na primeira eleição direta para prefeito de São Paulo em 20 anos, Chico Buarque não só emprestou seu rosto para a campanha de Fernando Henrique Cardoso (então no PMDB) como criou uma versão da música "Vai Passar" exclusivamente para a campanha: "Vai Ganhar".
Os artistas voltariam a figurar campanhas em massa em 1989, ano da primeira eleição presidencial com voto direto depois de 1960. Naquele ano, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seria o preferido dos artistas. Chico Buarque voltaria a figurar um jingle eleitoral, desta vez ao lado de Gilberto Gil, Djavan e Wagner Tiso com "Sem Medo de Ser Feliz (Lula Lá)".
Além dos artistas, o petista reuniria diversos artistas nacionais em um comício no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, antes de enfrentar —sem ganhar— Fernando Collor (PRN) no segundo turno. Entre os apoiadores estavam Caetano Veloso, Beth Carvalho, Luiz Melodia e uma estranha surpresa: o cantor Lobão, que chegou a pedir votos ao vivo no "Domingão do Faustão", da Globo.
Apoios que hoje parecem improváveis faziam sentido na época nos respectivos contextos históricos. O PMDB era visto como um partido 'progressista'. E não espanta que Lobão tivesse apoiado Lula, pois era um jovem cantor de rock --um gênero que representou a crítica político-social. O que poderia ser impensável é, para alguém daquela época, ouvir os posicionamentos de Lobão hoje.
Rafaela Lunardi, historiadora
Lula não era o único. No primeiro turno, os Engenheiros do Hawaii rodaram parte do Sul junto à caravana do conterrâneo gaúcho Leonel Brizola (PDT).
Por amor ou por dinheiro?
Com a consolidação democrática, os showmícios se tornariam parte essencial da campanha política nos anos 90. Com algum dinheiro, pequenas siglas do interior promoviam festas na praça com artistas locais. Com muito dinheiro, grandes campanhas levavam estrelas para seus palcos.
No Sul e no Sudeste, era comum que bandas de pagode fizessem fins de semana de showmício. Na quinta, pedindo votos para um candidato em São Paulo, no sábado em Maringá (PR) e um especial de domingo para outro no interior paulista. O mesmo acontecia no Nordeste com bandas de axé e com grandes cantores sertanejos por todo o interior do país.
Em 2002, última eleição presidencial em que os showmícios foram permitidos, houve divisão entre os sertanejos mais famosos do Brasil. No palco de José Serra (PSDB), Leonardo, Daniel e Rio Negro e Solimões. No de Lula (PT), Zezé Di Camargo e Luciano.
Lunardi lembra que opção de artistas tocarem em showmícios por altos cachês não era uma novidade nem significava, necessariamente, que as apresentações eram feitas apenas por dinheiro.
Não considero que tenha havido só apelo comercial. Existem artistas que participaram de campanhas voluntariamente, existem artistas que participaram de forma oportunista e existem artistas que ficaram no meio-termo, ou seja, até acreditavam no candidato, mas o que mais lhes interessava era o cachê
Rafaela Lunardi, historiadora
Junto a Lula, por exemplo, seguiam apoiadores históricos, como Chico, Gil, que viraria ministro da Cultura, Beth Carvalho e o cantor Samuel Rosa, do Skank.
2006: A proibição
Tudo isso acabou em 2006. O Congresso aprovou a Lei nº 11.300, que proibia, entre outras coisas, "a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral".
"Foi uma resposta meio às pressas ao mensalão [descoberto em 2005]. Foi uma tentativa de resposta do Congresso à sociedade sobre uma redução dos custos absurdos das campanhas. Então tirou outdoor, churrasco com cerveja, brindes e o showmício", diz o advogado eleitoral Fernando Neisser.
O veto aos showmícios não significou o fim dos apois de músicos. Eles passaram a subir aos palcos não mais para cantar, mas para discursar, e a gravar programas eleitorais.
Em 2014, artistas da música se uniram em oposição à reeleição de Dilma Rousseff (PT) na campanha do então candidato Aécio Neves (PSDB). Entre eles, estavam os sertanejos Chitãozinho e Xororó, Renato Teixeira, Fagner, Beto Guedes e os ex-apoiadores petistas Lobão e Zezé Di Camargo.
Em 2012, Caetano Veloso participou ativamente da campanha de Marcelo Freixo (PSOL) à Prefeitura do Rio de Janeiro. O baiano fez um show na capital fluminense ao lado de Chico Buarque, em que o equivalente ao arrecadado em ingresso foi revertido à campanha psolista em forma de doação individual de ambos.
Uma possibilidade autorizada pelo TRE-RJ (Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro), sem que houvesse qualquer envolvimento da campanha de Freixo ou do próprio candidato na apresentação.
Online pode? O que é permitido?
Agora, com as campanhas cada vez mais online e a herança da pandemia de coronavírus, passou-se a discutir os livemícios, possibilidade vetada pelo TSE por entender que segue a mesma lógica do showmício.
Procura-se, então, novas formas de prestar apoio. Neste mês, a campanha de Manuela D'Ávila (PCdoB), em Porto Alegre, consultou o TRE-RS (Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul) sobre a possibilidade de Caetano Veloso fazer uma live para angariar fundos para sua campanha e para a de Guilherme Boulos (PSOL), em São Paulo.
A questão é polêmica. Em primeira instância, foi suspenso o evento, originalmente programado para 7 de novembro, reta final para o primeiro turno. Na última segunda-feira (19), o MPE (Ministério Público Eleitoral) deu parecer oposto. O julgamento está marcado para amanhã.
"O debate, agora, é tentar entender por que se colocou contra o showmício lá atrás. Se é a questão de dar coisas para o eleitor, como um brinde, e ser errado misturar política com cultura, é uma coisa. Se for apenas para reduzir o custo da campanha, aí é outra forma de responder", diz Neisser.
"Músicos possuem fãs, muitos seguidores em redes sociais, conseguem agregar milhares de pessoas e também, claro, formam opinião. Campanhas com a presença de música tendem a ser mais atrativas. E isso vale para funk, hip hop, MPB, rock, sertanejo", afirma Lunardi.
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