'Marçal já conseguiu que a eleição em SP seja sobre ele', diz antropóloga
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado soube da existência de Pablo Marçal há dois anos através de seus entrevistados, ouvidos dentro de uma pesquisa Marketing Digital e Política Extrema, realizada com apoio do Conselho Europeu de Pesquisa.
Os dois temas do estudo se conectam a Marçal pela natureza da sua atividade como empresário e, agora, como candidato estreante na política: incentivo constante para quem quer ganhar dinheiro por conta própria, e oferta de soluções simples para enfrentar os problemas à frente da cidade de São Paulo.
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Nesse segundo quesito, o empresário-candidato do PRTB focou sua campanha em desacreditar seus adversários com golpes abaixo da cintura. Factoides, notícias falsas, com mensagens curtas que instigam o moralismo, a ética do trabalho e o conservadorismo que vem tomando o Brasil, observa Rosana. "Ele fala para um Brasil que está mais evangélico, não só na religião, mas numa lógica cultural evangélica que predomina nos últimos anos, até mesmo em terreiros", diz ela, que vive na Irlanda onde dá aulas na UCD (Universidade de Dublin). Isso vale tanto para a valorização exacerbada da família, como para a ideia do livre mercado e o enriquecimento individual. "Entrevistei uma empreendedora negra, camelô, evangélica, mãe de quatro filhos, que mora na Rocinha, no Rio. Ela me disse que as duas inspirações da vida dela são Marçal e o Silvio Santos", contou a antropóloga. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
UOL - Pablo Marçal tem sido um elemento desestabilizador deste início de campanha em São Paulo. Provoca, fala alto, inventa histórias, fura as regras. No Brasil ainda se vence eleição no grito?
Rosana Pinheiro-Machado - A gente sabe que já se venceu eleição no grito no Brasil (com Jair Bolsonaro em 2018). É a tática de gerar materiais para ter recortes nas redes sociais. Como populista, Marçal se parece com o Bolsonaro. Faz uso de palavras e slogans específicos, e aí joga nas redes com pontos que doem, têm eco na população. Um discurso que pode ser vazio, mas com uma frase que tenha algum significado. Bate na moralidade, na ética do trabalho e ele faz isso muito bem. Ele talvez seja a pessoa que mais sabe usar as redes entre os políticos hoje. E ele também vem de uma história nas redes sociais, com popularidade extraordinária, se tornou um fenômeno admirado nas classes populares, nesse grande setor da classe C. Essa é a grande parte da pirâmide da população brasileira, os batalhadores.
Como o Pablo Marçal entrou no seu escopo de estudo?
Nosso trabalho é sobre [a relação entre] marketing digital e política extrema no Brasil, Índia e Filipinas, que são países com carência econômica. Marçal apareceu há dois anos nas nossas entrevistas como referência para pessoas do Brasil todo. Hoje [segunda,19] entrevistei uma empreendedora negra, camelô, evangélica, mãe de quatro filhos. Ela é moradora da Rocinha, no Rio. Ela me disse que as duas inspirações da vida dela são Marçal e o Silvio Santos.
Fenômeno que ultrapassa São Paulo?
Vejo pessoas que o admiram no Rio Grande do Sul, em Manaus. A gente segue nas redes pessoas da pesquisa e as vemos clicando, compartilhando vídeos do Marçal com a carteira de trabalho, colocando Boulos como Satanás. Ele vai nas pessoas comuns, trabalhadores. Alguns votaram no Bolsonaro. Marçal entra com uma nova figura, inclusive para as pessoas que já se decepcionaram com Bolsonaro. E aí ele entra de novo com o discurso anticorrupção e antissistema, dois pontos críticos para a população brasileira, legitimamente decepcionada com a ausência do estado. Ele transforma uma dor legítima, que é a violência do estado, em populismo puro.
E para milhões nas redes sociais.
Ele é o cara para a eleição do Instagram, deste ano. A gente teve a eleição do Facebook (2014), a eleição do WhatsApp (2018) e a gente vai ter essa eleição no Instagram. Ele é um fenômeno de redes sociais há muito tempo. E ele vem com essa coisa de jogar mentiras, de usar frases de efeito, ele eleva essa tática a outro nível. A imagética de boné, o "faz o M". Ele já se soltou muito no segundo debate [do Estadão/Faap], porque é muito acostumado com palco. Já falou para centenas de milhares de pessoas.
Tem potencial de crescer mesmo sendo agressivo, até mais que o Bolsonaro?
Ele já emerge como um fenômeno das redes. O Bolsonaro foi o deputado mais votado em 2014 sem ser ainda um fenômeno nas redes. Ele começa a crescer em 2014, era o nome mais buscado no Google naquele ano. Mas Bolsonaro tinha um eleitorado no Rio de Janeiro, com relações familiares políticas e econômicas. Marçal não, ele já vem como coach de rede. Bolsonaro foi aprendendo a ser populista. Ele falava o que pensava de uma maneira tosca, agressiva e foi aprendendo junto com os filhos o que era a tática populista, estudando o Trump, o que era "apito do cachorro" [mensagens dúbias para atiçar público em questões que fogem à ética] . Marçal já chega no primeiro debate fazendo sinal de cheirador, chega pronto na tática populista. Talvez ele seja a pessoa mais especializada em explorar as redes sociais entre todos os políticos.
Dá para deduzir que ele continuará crescendo nas pesquisas?
A gente não tem como saber isso agora, mas o que a gente sabe é que, de alguma maneira, ele já ganhou no que ele queria, né? Porque a eleição já virou sobre ele. No dia seguinte ao primeiro debate ele já virou manchete dos jornais. E assim com 'Marçal isso', 'Marçal aquilo', foi colocado num ambiente em que nunca esteve. Ele vai dobrar a aposta na agressividade, para se manter no topo da mídia. E assim vai ganhando seguidores, continua expandindo o negócio dele. Até o segundo turno, ele vai crescer muito ainda.
Como o marketing digital, que é teu objeto de estudo, entra aqui? A ideia de ficar rico online?
Isso é um fenômeno no Brasil, representa uma parte gigante do mercado, pode chegar a 25% da população economicamente ativa. Esse quadro que a gente tem hoje no Brasil está na base de tudo isso. E a causa está na profunda precariedade da população brasileira, na falta de emprego, de política pública robusta para essas pessoas. Do outro lado, a gente tem esse mundo do marketing digital, que pega principalmente pessoas da periferia, até mulheres negras mães que acham que vão fazer renda extra online. Mas por quê? Porque a mulher que vai conseguir um emprego de trabalhadora doméstica, vai ter empregos ruins, por vezes humilhantes, degradantes, duas horas para ir e duas horas para voltar, muitas vezes submetidas na violência. Marçal emerge de uma carência, de um mundo que está gritando por uma profunda falta de política pública robusta de emprego. A mensagem falaciosa dele é que todo mundo vai ser empreendedor.
Mas a última pesquisa Datafolha mostrou que ele só tinha 8% de apoio do eleitorado feminino. Pode mudar?
Acredito que vai mudar. Ele colocou uma mulher negra como vice dele (a policial militar Antônia de Jesus). Baseado no que vejo em campo, que é essa cultura evangélica como estilo de vida, ele também terá muito apelo entre mulheres evangélicas. Nós conhecemos o Marçal através de pequenas empreendedoras, boleiras, manicures. Apesar dele colocar a figura da masculinidade de maneira muito forte.
Ninguém para Marçal então?
A Justiça eleitoral pode freá-lo. Ele é um candidato que tem diversos processos e investigações.