OPINIÃO
Kotscho: Sem estrela nem Lula, petista é a surpresa em reduto bolsonarista
Ricardo Kotscho
colunista convidado
20/10/2024 05h30
Em meio à derrocada do partido no primeiro turno das eleições municipais, o PT teve uma boa notícia de onde menos se esperava: vem de Cuiabá, em Mato Grosso, um dos redutos do agronegócio mais bolsonaristas do país.
Alguém poderia imaginar o Corinthians entrar em campo hoje contra o Flamengo, de uniforme lilás e sem o escudo do Timão na camisa?
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Pois é esta a surpresa da campanha eleitoral no Centro-oeste. O médico Lúdio Cabral (PT) não só foi para o segundo turno como está tecnicamente empatado (41% a 43%, respectivamente), com o deputado Abílio Brunini (PL), um bolsonarista raiz, segundo a última pesquisa AtlasIntel.
A uma semana da reabertura das urnas, Cabral está fazendo uma campanha de rua em que predomina a cor lilás no lugar do vermelho e da estrela petista. O número 13 do partido quase não se vê nas propagandas, e o presidente Lula não aparece nem em vídeo na TV.
A receita do candidato petista é simples: "Fizemos uma campanha de diálogo com o centro e até com o eleitorado conservador, que foi fundamental para alcançarmos 12% do eleitorado de Bolsonaro no segundo turno". Em 2022, o ex-presidente teve 66% dos votos em Cuiabá.
Quem não gostou do novo figurino do PT foi o vereador Rafael Ranalli, do PL, que acusou Cabral de esconder o partido na campanha. "Pelo amor de Deus, isto é chamar o eleitor de burro. É estelionato eleitoral".
Bem que o adversário tentou nacionalizar a campanha com ataques a Cabral baseados na velha pauta de costumes bolsonarista (aborto, drogas, ideologia de gênero), mas o petista não caiu na armadilha.
"Estamos nas ruas, conversando diretamente com a população e fugindo da armadilha da polarização ideológica, que não faz sentido em eleição municipal. Nosso foco está em apontar soluções para os problemas da cidade", disse ele, em entrevista ao programa Boa Noite 247.
Cabral tem um discurso muito parecido com o do prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman (PSD), candidato à reeleição, que se define como "centro progressista" e lidera com folga as pesquisas contra o furioso bolsonarista Bruno Engler (PL), com o apoio de partidos de esquerda.
Na salada partidária que emerge dessas eleições, casos como os de Cabral e Noman podem ser analisados na grande pajelança marcada para dezembro, quando a direção nacional do PT, em meio a mais uma crise existencial, quer discutir o futuro com base nos resultados de 2024 e no novo mapa político do país.
Resta claro que o partido enfrenta problemas não só na comunicação, como constatou o próprio presidente Lula esta semana, mas no seu discurso e no relacionamento com o eleitorado, diante de um mercado de trabalho que mudou radicalmente desde a sua chegada ao poder em 2003. Carteira de trabalho, por exemplo, virou lembrança do passado.
A direita e a extrema direita souberam se adaptar melhor a essas mudanças, como mostra o resultado das eleições, em que nunca se falou tanto em empreendedorismo e meritocracia, no lugar das lutas coletivas por democracia e melhores condições de vida e trabalho da época da fundação do PT, 44 anos atrás.
O chão de fábrica e os sindicatos operários mobilizados daquela época, assim como as comunidades eclesiais de base da igreja católica, quando o país ainda lutava por anistia, Constituinte e eleições diretas para presidente, são espaços hoje ocupados e bem utilizados pelas milícias digitais da onda reacionária que assola o país desde o golpe parlamentar de 2016. O tempo passou depressa na janela e só o PT, e as esquerdas em geral, não viram.
Nesta semana, Fernando Haddad, o mais contemporâneo dos líderes do PT, em entrevista a Mônica Bergamo, na Folha, desenhou com muita lucidez este cenário:
"A esquerda está devendo um sonho e não está dialogando com um projeto de futuro, enquanto os palhaços da extrema direita ocupam o picadeiro."
O exemplo de Mato Grosso mostra que nada é impossível, até o PT vencer em Cuiabá, onde pode ter, talvez, a única vitória do partido nas capitais do país. Quem poderia prever isso antes da campanha eleitoral?
Vida que segue.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL