A fumaça do contrabando

Nova série documental discute o problema e aponta soluções integradas pelo bem da sociedade

oferecido por Selo Publieditorial

8:37

Episódio 1

8:32

Episódio 2

9:02

Episódio 3

5:27

Episódio 4

Quatro veículos de passeio correm pela BR-277, saindo de Foz do Iguaçu, no Paraná, em direção à Curitiba, e depois São Paulo. Há somente o banco do motorista: o restante do espaço foi preenchido por caixas de papelão abarrotadas de cigarros contrabandeados do Paraguai.

Com modificações tecnológicas, os carros conseguem atingir velocidades absurdas, mais de 200km/h, mas o comboio dos "cavalos-doidos" -como são chamados os contrabandistas que atuam na fronteira do Brasil com o Paraguai - é liderado por um batedor, que vasculha o caminho em busca de qualquer sinal de policiais ou fiscalização. Os carros emitem uma quantidade de fumaça que impede a visão clara do redor, e alguns até deixam pregos para trás, na estrada, como forma de despistar agentes da lei.

Ao atravessar a fronteira em uma elaborada operação de contrabando, sem pagar impostos e para serem comercializados por valores muito abaixo do mercado nacional, os cigarros se tornam um verdadeiro problema para o País - deixando um rastro de corrupção e violência pelo caminho.

Por que vale a pena arriscar e levar cigarro do Paraguai até o nordeste do Brasil e ainda ter lucro com isso? O cigarro produzido no Paraguai é muito barato, e o vendido no Brasil é muito caro. Nós precisamos trabalhar com esses valores para conseguir diminuir o contrabando. Enquanto isso não acontecer, tenho certeza absoluta que o contrabando de cigarros não vai diminuir.

Mozart Fuchs, atual chefe da delegacia regional de investigação e combate ao crime organizado no Paraná

O problema do contrabando de cigarros é sistêmico e prejudica toda a sociedade brasileira, uma vez que a venda do produto ilegal sustenta o crime organizado, especialmente na compra de armas e de drogas, aumentando a violência nas cidades. Além disso, o Estado deixa de arrecadar bilhões em impostos com a ilegalidade. Em 2019, o mercado ilegal de cigarros correspondeu a 57% de todos os cigarros consumidos no Brasil, segundo levantamento realizado pelo Ibope Inteligência. Estima-se que o crime organizado movimente cerca de R$ 10,9 bilhões por ano com o cigarro ilegal.

Para jogar luz nesta questão e discutir soluções, acaba de ser lançada a série documental Cigarro do Crime, produzida pela Vice Brasil em parceria com o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) e com direção de João Wainer. A produção dá continuidade ao filme homônimo lançado em maio de 2020.

O número de fábricas de cigarro no Paraguai aumentou exponencialmente entre 1995 e 2014 - de três para 33. Com cerca de 7 milhões de habitantes, o país vizinho produz mais de 71 bilhões de cigarros todo ano, dos quais consome cerca de 2,3 bilhões. O restante - 67,2 bilhões - é majoritariamente contrabandeado para o Brasil.

Enquanto os impostos aplicados em média no Brasil são de 71% do valor do produto, podendo chegar a 90% em alguns estados, no Paraguai a média é de 18%, uma das menores taxas do mundo para produção do cigarro.

O cigarro atrai práticas ilegais por conta do imposto. Quando se aumenta o imposto, se aumenta também a competitividade do contrabando.

Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP)

O resultado da disparidade na taxação é que, nos últimos 5 anos, o produto paraguaio passou de 39% do consumo no Brasil para os atuais 57%. Na prática, seis em cada dez cigarros fumados por aqui são ilegais, segundo o Ibope.

Entre os desafios no combate ao contrabando de cigarros está um maior controle das fronteiras. São quase 1.600 quilômetros de limites secos no país. O trabalho intensivo realizado pelas Polícias, Receita Federal, Ministério da Justiça e Segurança Pública avança e faz com que o país alcance vitórias expressivas no enfrentamento ao crime organizado, mas ações de repressão isoladas não bastam. "É preciso seguir ampliando essas medidas", explica Fuchs.

Precisamos de uma visão mais global de governo que compreenda que se investirmos um real na fronteira, economizamos muito mais no sistema de saúde e na segurança pública.

Mauri Konig, jornalista investigativo, que participa da série.

Além da dificuldade de absorver todo o volume do contrabando para o Brasil pela amplitude da fronteira, a ação criminosa é corrosiva e constantemente coopta novas pessoas - o crime do contrabando de cigarros é considerado "leve" e, portanto, com punição branda ou mesmo impune. João Wainer, diretor de Cigarro do Crime, cita o exemplo de um jovem 'formiguinha' - como são chamados os homens que carregam as caixas de cigarro contrabandeadas da margem do Rio Paraná até os carros dos cavalos-doidos em território brasileiro -, preso no ano passado em Foz do Iguaçu. Na delegacia, foi instituída uma fiança de R$ 25 mil para liberá-lo, mas o jovem interpelou: "Pode ser R$50 mil?". Diante da surpresa do delegado, o homem explicou que ganharia metade do valor para permanecer preso e não delatar outros integrantes da quadrilha.

Wainer também conta que há dificuldade em desmantelar as quadrilhas, que formam redes descentralizadas, nas quais é difícil identificar um único "chefe". É por isso que, na visão dele, apesar do bom trabalho das forças de segurança e fiscalização, concentrar-se somente na repressão dos crimes na região pode ser como "enxugar gelo".

Pouca gente imagina, mas embora haja diferenças entre as atividades de contrabando e tráfico, boa parte do lastro criminal que envolve o tráfico de substâncias ilícitas - como violência, roubos de veículos, assassinatos, disputas sangrentas por território - também aparece no contrabando (que é uma atividade ilegal com um produto legal).

A prova disso é que, na visão de Konig, o comércio ilegal de cigarros tem tido um crescimento tão grande que rivaliza com outros tipos de produtos, como as drogas ilícitas.

O contrabando de cigarros é tão economicamente relevante quanto o tráfico de cocaína e maconha, e, como movimenta muito dinheiro, o crime organizado quer ter participação.

Mauri Konig

Vale destacar ainda que, frequentemente, aproveitando-se da logística, são trazidos juntamente com os cigarros outros tipos de mercadorias ilícitas, como armas de fogo, drogas e medicamentos

Mozart Fuchs

Não basta só reprimir

Ações mais eficazes no combate ao contrabando passam por suprimir tanto oferta quanto demanda, segundo Vismona. Na oferta, o caminho é a repressão das atividades criminosas, apreensão dos produtos contrabandeados, desmantelamento de quadrilhas e diminuição do espaço dos criminosos. Já na outra ponta, a da demanda, há duas questões fundamentais.

A primeira é a necessidade urgente de revisão da estrutura tributária sobre os cigarros. Para ele, é importante entender que não pode haver novos aumentos nos impostos do cigarro, e que é necessária uma discussão mais profunda sobre como equilibrar a situação. "No Brasil, por outro lado, podemos calcular novamente a equação para viabilizar algum produto mais barato, que possa concorrer com os produtos do contrabando", diz o presidente do FNCP.

Segundo delegado Mozart Fuchs, "é fundamental também que se retire o poderio financeiro das organizações criminosas para que possamos enfraquecê-las. O mero aumento da pena do crime de contrabando apenas não reduzirá a atividade," afirma.

A conscientização da sociedade sobre a gravidade do crime é o outro ponto fundamental para a diminuição do contrabando no Brasil. "O mercado ilegal gera muito dinheiro com baixa impunidade. As pessoas acabam aceitando porque pensam que comprar cigarro ilegal não é tão ruim assim, e isso atrai todo mundo que quer operar na ilegalidade", completa Vismona.

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