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Opinião: Onda de linchamentos na Argentina é o vírus do vale tudo

Ricardo Roa

Do Clarín, em Buenos Aires

05/04/2014 23h18

O argentino David Moreira tinha 18 anos e roubou a bolsa de uma mulher nos arredores de Rosário, na província de Santa Fe. Um grupo de moradores o interceptou e o matou a socos e pontapés.

Ele morreu na quinta-feira, 27 de março, três dias depois do ataque dos populares.

Nesta semana, na segunda-feira (31), também lá, em Rosário, taxistas investiram contra Oscar Bonaldi, 22 , e Leonardo Medina, 24. Eles os confundiram com ladrões e os desfiguraram a golpes.

Eles não eram ladrões, eles estavam indo trabalhar.

De repente, episódios parecidos surgiram em vários lugares. Na mesma segunda, 31 de março, em Rio Negro, na Patagônia, um delinquente foi pego roubando. Moradores bateram nele até ele ser resgatado pela polícia.

No sábado, 29 de março, a uma quadra e meia do shopping Alto Palermo, na cidade de Buenos Aires, outra horda atacou um delinquente que tinha roubado uma bolsa. O escritor Diego Grillo foi testemunha e mostrou seu espanto por Twitter: “Cada vez que o rapaz dava sinais de ter recuperado a consciência alguém saía da multidão e chutava seu rosto. Para que se entenda: da boca dele saía um rio de sangue que primeiro formava uma poça na calçada e depois um córrego até a rua”.

Esse fazer justiça por conta própria brota em muitos lugares e essa vontade de bater e até de matar também está nos estádios, onde os visitantes não podem assistir aos jogos e às vezes nem os torcedores do time mandante. Os linchamentos são um plus da insegurança.

Contra o vandalismo dos vândalos chega o vandalismo dos vingadores porque há indignação e medo em relação a quem provoca medo e não existe Justiça.

No entanto, a vingança direta perante a ausência de Justiça é ao mesmo tempo injusta e antecipa algo terrível: ela pode crescer.

A violência é contagiosa, é um vírus que pode chegar a ser uma epidemia.

O Estado, que deveria brecar isso, não aparece e a ausência gera impunidade, como foi se viu há bem pouco tempo na Ponte Avellaneda, em Buenos Aires, onde membros de torcidas organizadas disfarçados de sindicalistas e sindicalistas que bloqueavam a passagem e de lá de cima jogaram um inválido que tentou atravessar a ponte de moto.

A polícia estava lá. E não se meteu.

Perante um governo de braços cruzados diante da violência e que tem feito da agressividade um cânon, a agressividade se propagou.

Há uma metáfora que mostra o estado das coisas: a Praça de Maio.

O lugar onde Buenos Aires nasceu e que é desde sempre nosso centro político e simbólico está cheia de barracas de pseudo veteranos de Malvinas que reivindicam ser combatentes de uma guerra que não lutaram e outras com moradores da província do Chaco, no norte do país, que reivindicam terras e que ali comem, lavam a roupa e a penduram em volta da Pirâmide de Maio.

Mas a presidente Cristina Kirchner está mais preocupada com a praça que fica atrás da Casa Rosada, a sede da Presidência, e com a estátua de Colombo que ela mandou desmanchar.

A retirada do Estado deu lugar ao vale tudo e nesse vale tudo se expande a ilegalidade e a mais primitiva e perigosa forma de enfrentar os conflitos.

Texto originalmente publicado no site do Clarín em Português.