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Guerra destruiu figura do "homem herói" e consagrou mulher no trabalho

Em imagem de 1916, mulheres trabalham em fábrica de munição em Londres  - Archive of Modern Conflict London/Reuters
Em imagem de 1916, mulheres trabalham em fábrica de munição em Londres Imagem: Archive of Modern Conflict London/Reuters

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

08/05/2015 06h00

Elas não podiam andar por aí desacompanhadas, não podiam trabalhar se fossem casadas, mal estudavam e passavam boa parte da vida em casa, cozinhando e cuidando dos filhos. Isso não faz muito tempo e é difícil imaginar que assim viviam as mulheres ocidentais no início do século passado: carreira, dinheiro e poder eram exclusividade masculina. O homem sustentava uma imagem de "herói" onipotente, mas dois eventos devastadores, as Guerras Mundiais, fizeram ruir este modelo.

Tão impressionantes quanto o número de vidas perdidas e os horrores que a Primeira (1914-1918) e a Segunda Guerra (1939-1945) produziram são as mudanças de comportamento irreversíveis que elas provocaram nas décadas seguintes.

Se os homens foram convocados a defender suas pátrias nos campos de batalha, caiu sobre as mulheres a obrigação de ocupar o "vazio" que eles deixaram para trás.

Regras e valores da sociedade ficaram de lado, em alguns casos, porque era necessário e urgente contar com a força de trabalho feminina, como explica a professora Margareth Rago, 66, do departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (SP).

“O grande peso que as guerras têm é que elas quebram um imaginário, uma mentalidade, uma cultura que achava, desde o século 19, que lugar da mulher é em casa”, diz a pesquisadora, que dedica seus estudos à história das mulheres.

“Pouco tempo depois, no final dos anos 1960, explode o feminismo no mundo, e no Brasil essas ideias vão eclodir mesmo nos anos 1970.”

Principalmente na Segunda Grande Guerra, considerada o confronto mais mortal de todos os tempos e cujo fim na Europa completa 70 anos neste maio, funções nunca antes assumidas por mulheres foram entregues a elas, uma alteração na cadeia produtiva que já havia sido notada na guerra anterior.

A princípio, quem só era vista como capaz de trabalhar em tecelagens ou, na melhor das hipóteses, como educadora e enfermeira, passou a ajudar conduzindo trens e ônibus, atendendo ao público nas agências de Correios, servindo de mão de obra nas fábricas de armas e munições e como datilógrafa em repartições públicas.

De acordo com o jornal britânico “The Guardian”, já na Primeira Guerra, o número de operárias nas fábricas de munição, no Reino Unido, passou de 412 mil para 1,65 milhão entre 1914 e 1918, enquanto as trabalhadoras no transporte, que eram 18 mil, passaram a 117 mil.

Em 1941, durante a Segunda Guerra, o alistamento militar foi permitido às mulheres, e o governo passou a confiar que elas podiam ser úteis também em serviços mais complexos, como aqueles realizados nas operações de análises de códigos do inimigo.

Uma grande conquista nesta época foi a suspensão - -e depois a anulação, com o fim da Segunda Guerra -- da proibição a mulheres casadas de praticarem atividades em escritórios. 

É importante lembrar que, até o começo do século 20, mulheres não ocupavam profissões liberais, jamais trabalhavam em ambientes corporativos e chegavam a ser vistas como prostitutas se estivessem sozinhas na rua à noite.

Com a guerra, muito mudou. No Reino Unido, por exemplo, foram criadas creches para dar apoio às que saíam de casa para trabalhar. A Rússia contou, nos combates aéreos, com um eficiente grupo de aviadoras, o que jamais se cogitaria.

“As mulheres estão nas fábricas desde o início da Revolução Industrial [na Inglaterra, no século 18]. A industrialização começa com fábricas de tecidos, que quem faziam eram mulheres e crianças, só que era um contingente menor. A guerra força as mulheres a entrarem mais massivamente no mercado de trabalho”, diz Rago.

Isto não quer dizer, porém, que elas fossem respeitadas profissionalmente de forma igualitária. Quando os sobreviventes da Segunda Guerra retornaram para casa, uma parte da mão de obra feminina foi desprezada; a outra parte pôde manter seus postos de trabalho, embora ganhando menos e em funções tidas como inferiores às dos homens.

Para a professora da Unicamp, não somente a guerra, mas também o desenvolvimento econômico possibilitou que se aproveitasse um grupo de indivíduos que antes era ocioso. Foi o capitalismo que enxergou uma oportunidade de crescimento nessa mão de obra.

“A guerra favorece indiretamente essa emancipação feminina porque coloca as mulheres no mundo público, em qualquer profissão, em qualquer trabalho, porque a necessidade obriga, e um desenvolvimento econômico vai precisar de mais gente, também de mulheres. Isso favorece a explosão do feminismo. Se eu posso tanto quanto ele, por que eu ganho menos?”, afirma a professora.

Embora os anos 1950 sejam vistos como a década da "rainha do lar", em que imperou o padrão conservador de família (homem de gravata no escritório e mulher de avental em casa), é por causa da Segunda Guerra Mundial que esse modelo fica abalado e passa a perder valor nos anos seguintes.  

“A guerra vai forçar tanto as mulheres quanto os homens a situações em que os homens vão deixar de ser heróis e vão mostrar sua fragilidade. Aquela ideia de que o homem é poderoso, é viril, é racional, a guerra acaba com tudo isso”, avalia a professora Rago, explicando que foi nos anos 1960 e 1970 que ganharam voz mais evidente os movimentos feminista, gay e dos direitos civis dos negros, especialmente nos Estados Unidos.

“Quinze anos não é muito tempo [de 1945, fim da Segunda Guerra, a 1960], porque a guerra é um trauma. Veja no Brasil, fez 50 anos da ditadura [em 2014] e estamos falando dela, demora a cair a ficha. O mundo vai se informando cada vez mais do que aconteceu: o que foi o Holocausto, o que foi o nazismo... À medida que essas histórias vêm à tona, as coisas vão mudando, e as mulheres foram se fortalecendo.”

O que ficou pendente no pós-guerra?

Estamos falando de sete décadas desde que chegou ao fim na Europa a Segunda Guerra Mundial, e “há muitas transformações, mas também há muitas continuidades”, diz a professora Rago.

As mulheres ainda têm salários 30% menores, em média, em relação ao que recebem os homens na mesma função. Em muitos lugares do mundo, a violência física e sexual contra elas não é crime, ainda existe punição por adultério contra parceiros homens e é proibido dirigir um carro ou trabalhar.

Aqui no Brasil, a palavra feminicídio não consta, até agora, em dicionários, mas, desde o último mês de março, passou a ser considerado hediondo o crime de matar com violência uma mulher porque ela é mulher.

“As mulheres cresceram muito, mas o mundo ainda é dos homens. (...) É assustador que depois de tudo isso apareçam grupos fundamentalistas, como os de religiosos, que levam seus valores para os partidos políticos, ou extremistas, como o Estado Islâmico”, critica a professora, sem esquecer dos radicais do Boko Haram, na Nigéria, que há um ano sequestraram centenas de estudantes e as obrigaram a se converter ao islamismo e a servirem de escravas sexuais – muitas continuam sob o poder do grupo.

A pesquisadora também aponta como conquistas ainda não alcançadas desde o fim da guerra a descriminalização do aborto, uma presença maior de mulheres em cargos de comando e o reconhecimento feminino na história da humanidade.

“As mulheres ainda não aparecem nos livros de história da literatura brasileira, por exemplo. Só há homens e três mulheres: Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Cecília Meirelles, sendo que existem muitas outras escritoras.”

O Brasil entrou oficialmente na Segunda Guerra em 1942, e a participação das mulheres foi mínima, como enfermeiras, muitas vezes voluntárias, nem sempre treinadas o suficiente.