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Desafio de Cristina será como fazer o kirchnerismo sobreviver sem estar no poder

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

23/10/2015 06h00

Se as pesquisas de intenção de voto se confirmarem, o candidato escolhido pela presidente Cristina Kirchner, Daniel Scioli,  governador da Província de Buenos Aires, será o próximo presidente da Argentina. Com o cargo, vem o peso da herança de 12 anos do kirchnerismo e a missão de mantê-lo –ou não. E está é a grande incógnita da política argentina nas últimas semanas: será o fim da Era Kirchner? Talvez não.

Ainda que tenha sido vice-presidente de Néstor Kirchner entre 2003 e 2007, Scioli distanciou-se de Cristina e sua vertente do peronismo nos últimos anos. Entretanto, sem a possibilidade de disputar um terceiro mandato, Cristina preferiu apoiar um nome com peso nas pesquisas de intenção de voto e que poderia assegurar o seu grupo no poder, ainda que o escolhido não estivesse entre seus favoritos. O vice na chapa, porém, é ligado diretamente ao grupo que rodeia Cristina: o fiel kirchnerista Carlos Zannini.

Daniel Scioli e Cristina Kirchner - Marcos Brindicci/Reuters - Marcos Brindicci/Reuters
Daniel Scioli e Cristina Kirchner
Imagem: Marcos Brindicci/Reuters
E Scioli vem mostrando resultados: promete manter as políticas aplicadas pelo casal Kirchner nos últimos anos e, segundo a consultoria Management & Fit, aparece com 38,3% nas intenções de voto, perto de evitar um eventual segundo turno contra o atual prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri (29,3%), e contra o deputado Sergio Massa (21%) –rivais peronistas, dissidentes do grupo de apoio de Cristina. Para ser eleito, Scioli precisa ter ao menos 40% dos votos e uma diferença de 10 pontos percentuais sobre o segundo colocado ou somar 45% dos votos.

Com a vitória de Scioli, a grande dúvida que paira no ar é se existe kirchnerismo sem que um representante da família esteja no poder. Em entrevista ao UOL, María Matilde Ollier, decana da Escola de Política e Governo da Universidade de San Martin, em Buenos Aires, aposta em uma cisão. "O peronismo não tolera uma dupla liderança. Se Scioli vencer, é bastante provável que veremos uma disputa de poder entre ele e Cristina”.

"Está eleição decidirá qual é o lugar que o kirchnerismo terá em um governo que não é liderado por um kirchnerista, e que parece estar mais próximo de lideranças do peronismo tradicional”, afirma Javier Zelaznik, professor de Ciência Política da Universidade Torcuato Di Tella, em Buenos Aires. “Em outras palavras, como Cristina jogará com a subsistência de seu kirchnerismo como movimento político, sem contar com a estrutura do governo”.

Apesar de toda crise que a Argentina enfrenta, Cristina sustenta altos índices de popularidade -- 39,2% de aprovação, segundo a Management & Fit--, graças a programas sociais e uma retórica forte contra os inimigos que elege: sejam os EUA, os opositores ou os britânicos. Sua popularidade é explicada por sua capacidade de evitar que os problemas econômicos transbordem.

“Apesar de ter acelerado a inflação e estancado a economia, o governo manteve os níveis de emprego e, pelo menos em 2014, de consumo. Para os padrões do povo argentino, mesmo com a inflação e a ausência de crescimento, hoje não há uma crise econômica. Para o argentino, o parâmetro de crise é período de 2001 e 2002 ou a hiperinflação de 1989”, explica o analista político Ignácio Labaqui, da UCA (Pontifícia Universidade Católica Argentina).

Em 2007, Cristina foi eleita presidente, com 45,29% dos votos. Ela assumiu o posto que era de seu marido, Néstor, e se tornou a primeira mulher eleita presidente na Argentina - Reuters - Reuters
Néstor passa a presidência para sua mulher, Cristina, em 2007
Imagem: Reuters

E Scioli?

O provável futuro presidente argentino não é uma figura atraente para o kirchnerismo, mas o grande problema é principalmente que ele não se vê como um kirchnerista –ainda que tenha sido vice de Néstor. Entrou na política pelas mãos do ex-presidente Carlos Menem, e suas ligações regionais passam longe dos kirchneristas. Agora, apesar de representar e defender a continuidade do atual governo, tem a chance de iniciar uma nova etapa dentro do peronismo e com bastante legitimidade já que, se vencer, não será só os votos dos kirchneristas, mas também com os seus próprios votos.

María Matilde aposta que, se Scioli for eleito, haverá uma mudança de estilo na política do país. “Parece que Scioli não está de acordo em continuar dividindo o campo político entre amigos e inimigos, como Cristina faz, e sua gestão pode abrir um espaço maior de diálogo para a oposição”, acredita a especialista política.

“São esperadas muitas mudanças dentro da continuidade prometida por Scioli, com a passagem de poder da facção kirchnerista para o que pode vir a ser a facção sciolista”, comenta Javier, da Universidade Torcuato Di Tella.

O vice da chapa, Zannini, é visto como um elemento de continuidade kirchnerista em uma fórmula liderada por um líder não kirchnerista. Para muitos, sua indicação é resultado do enorme aparato contruído por Néstor e Cristina dentro do Estado, assegurando numerosos recursos para promover seu projeto político. É este cenário que torna Cristina capaz de impor um nome para a vice-presidência no partido, tentando garantir uma base de poder que perdurará quando acabar o seu mandato, em dezembro.

“Zannini foi o preço que Scioli pagou para obter a nomeação presidencial sem ter que enfrentar um rival nas primárias de agosto”, diz Ignacio, analista político da UCA. “Todos veem Zannini como uma tentativa de Cristina condicionar Scioli, mas talvez não o seja. A história mostra que um vice-presidente só é uma figura excepcionamente relevante em duas ocasiões: se há um empate em votação no Senado, ele desempata (e isso ocorreu 4 vezes em 32 anos) ou se o presidente fica gravemente doente e precisa se licenciar do cargo (ou morrer)”, enumera.

O herdeiro do sobrenome

2.jul.2015 - Máximo Kirchner, candidato a deputado pela província de Santa Cruz, participa de evento em homenagem a seu pai, Néstor Kirchner - Telam/AFP - Telam/AFP
Máximo Kirchner
Imagem: Telam/AFP
Cristina se empenhou pessoalmente em promover a campanha do filho, Máximo, 38, candidato a deputado nacional derrotado nas primárias da Província de Santa Cruz. Foi o primeiro teste nas urnas do fundados da La Cámpora, movimento radical de jovens militantes peronistas. Máximo pode até ser uma aposta futura de continuidade do kirchnerismo, mas ele é relativamente desconhecido no país, ainda que tenha semelhanças físicas com Néstor. “Ter o sobrenome pode ser uma condição necessária, mas não é suficiente para liderar. Carisma não é algo que se transmita”, analisa Ignacio Labaqui, da UCA.

Para que Máximo um dia seja um líder peronista, ainda que a família Kirchner dificilmente cite Perón, sua mãe, Cristina, precisaria se retirar da vida política. Para María Matilde, é difícil especular a posição política do herdeiro dos Kirchner em curto prazo. “Seu destino político está ligado ao de sua mãe”, afirma.

Oposição incapaz de se unir

Daniel Scioli, Mauricio Macri, Sergio Massa - AFP - AFP
Mauricio Macri e Sergio Massa
Imagem: AFP
Assim como na eleição vencida por Néstor Kirchner em 2003, que foi disputada por três peronistas (Kirchner, Menem e Adolfo Rodríguez Saá), esta eleição também reúne três peronistas (Scioli, Massa e Macri), com a diferença de ser bem mais competitiva. E ainda que sejam dois nomes fortes na política argentina, Massa e Macri, como rivais de Scioli, não conseguem unir suas plataformas --e seus votos-- para vencer o candidato de Cristina.

“A impossibilidade de unir 90% da oposição, liderada por Mauricio Macri e Sergio Massa, tem a ver com o personalismo de ambos. As diferentes facções e os egos políticos de seus líderes são mais fortes que a necessidade de união”, afirma María Matilde.

Depois da vitória nas eleições legislativas de 2013, Massa iniciou o seu próprio caminho, distanciando-se de Macri, prefeito de Buenos Aires. Macri, por outro lado, construiu sua liderança com outros grupos e recusou o convite de Massa para formar uma coalizão única para a candidatura presidencial.

“Não há uma oposição na Argentina, mas sim várias oposições. E ainda que todas estejam de acordo em preferir o kirchnerismo fora do poder, estão em desacordo em muitos aspectos, e um dos principais é quem deveria ocupar a Presidência assim que kirchnerismo for desalojado”, analisa Ignacio Labaqui.

Peronismo x kirchnerismo

O peronismo, vertente política criada por Juan Domingo Perón e sua mulher, Evita Perón, completou 70 anos neste mês e foi dominado por diferentes protagonistas ou linhas de pensamento. O peronismo toma o nome de quem o comanda, presidindo a nação. Em 1983, sob o comando de Antonio Caliero após a retomada da democracia, ficou conhecido como a “Renovação Peronista”. Sob o comando de Menem, ganhou os contornos do menemismo. Após um período conturbado durante a crise de 2001, foi assumido por Néstor Kirchner e Cristina, que delinearam o kirchnerismo.

O kirchnerismo hoje é uma facção interna do peronismo, com tensa relação com os líderes das províncias tradicionais peronistas. Sua base é a boa imagem do casal Kirchner, já que Néstor é o responsável por tirar o país de uma profunda crise econômica, e pelo manejo de recursos políticos e econômicos que permitiu que os dois presidentes controlassem os demais líderes peronistas.

“O kirchnerismo tem uma particularidade: é mais amplo e, ao mesmo tempo, mais reduzido que o peronismo”, explica Javier Zelaznik. “É mais amplo porque a experiência kirchnerista incorporou líderes e militantes com outras tradições políticas fora do peronismo, como esquerdistas ou ex-radicais. Mas ele é mais reduzido porque mantém parte dos peronistas afastada, entre eles dissidentes, como o próprio Massa”, conclui.