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Escapei da morte por acaso, diz sobrevivente do Holocausto que conta sua história em livro

Nanette Blitz Konig, em sua casa no bairro do Sumaré (zona oeste de São Paulo) - Gabriela Fujita/UOL
Nanette Blitz Konig, em sua casa no bairro do Sumaré (zona oeste de São Paulo) Imagem: Gabriela Fujita/UOL

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

27/10/2015 06h00

Prestes a fazer mais uma palestra, desta vez em uma livraria paulistana, Nanette König, 86, confidencia ao marido em voz baixa: “Acho que não vem ninguém”. Era perto das 19h, em um dia de semana, e ela estava ali a convite para contar parte (certamente a mais triste) de sua história.

Holandesa de origem judaica, Nanette perdeu a família no campo de concentração Bergen-Belsen, na Alemanha, onde permaneceu entre 1944 e 1945, por pouco mais de um ano.

Expor o que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial é um processo penoso demais para muitas vítimas da perseguição nazista, e é comum que perdure por anos o silêncio sobre o passado. Nanette, pelo contrário, escolheu não guardar segredo sobre as memórias horrendas daqueles meses e do que veio em seguida.

Os relatos sobre a adolescência ela começou a fazer aos poucos, no fim dos anos 1990, quando já era avó, e passaram a ser cada vez mais frequentes. Primeiro para seus filhos e netos, depois em palestras para escolas e instituições educacionais.

Em agosto de 2015, 70 anos após ser resgatada do campo de concentração, foi lançado “Eu sobrevivi ao Holocausto” (editora Universo dos Livros), em que ela narra sua experiência.

“Quem sobrevive por acaso tem um dever de relatar porque, senão, aqueles que morreram não têm voz, não têm representação, e têm de ter”, ela defende.

Testemunha de uma das piores atrocidades na história da humanidade, seu interesse maior é transmitir aos outros algo que, de tão brutal, é difícil conceber. Por isso a preocupação com que as pessoas estejam lá para ouvir o que ela tem a falar.

Surpreende a vitalidade desta mulher de olhos claros e vibrantes, cabelos curtos e vestido florido sem mangas, que tem uma agenda cheia e se levanta o tempo todo da cadeira enquanto dá a entrevista.

“Quase não sobra espaço para o tempo livre”, ela contou à reportagem do UOL em sua casa, no Sumaré (zona oeste de São Paulo). Em média, são três palestras por semana, às vezes também fora da capital. “Vou aonde me convidarem.”

Foi “por acaso” que escapou da morte, ela diz, pois não havia como sobreviver em tais condições. Ao lado do pai, da mãe e do irmão, chegou a Bergen-Belsen em fevereiro de 1944, dois meses antes de fazer 15 anos.

“Eu me lembro de quando cheguei, mas não de quando saí. Quando você sofre uma subnutrição como nós sofremos, tem hora que falham as sinapses no cérebro, não tem memória”.

Seu pai morreu em novembro daquele ano, vítima de um infarto provocado pela fome, ela acredita; o irmão e a mãe foram enviados para outros campos no mês seguinte, e a partir disso a adolescente Nanette ficou sozinha.  

“Deportaram meu irmão para Oranienburg [Alemanha], mas eu não sei o que aconteceu. Eu fiz pesquisa, mas não tem dados, ele deve ter sido morto quando chegaram lá (...), uma vez que Oranienburg pertencia a Sachsenhausen [campo de concentração], que tinha câmeras de gás, mas não consta o que aconteceu nesse transporte”, ela conta.

“Minha mãe foi deportada para o campo de concentração em Bendorf, e lá ela trabalhou 700 metros abaixo do solo em uma fábrica de partes de avião. E ela saiu de Bendorf de trem, em abril de 1945, com 2.000 mulheres, e esse trem não tinha destino, provavelmente chegou à Suécia, mas minha mãe morreu cinco dias depois da partida do trem. Também não sei o que foi feito com o corpo dela.”

Em abril de 1945, as tropas inglesas assumiram o campo onde Nanette estava, preparadas para uma batalha, mas não para o que lá encontraram: montes de corpos, muita gente à beira da morte, sujeira, ratos, piolhos... Foram os britânicos que deram a Bergen-Belsen o apelido de ‘Campo do Horror’.

“Tinha pilhas e mais pilhas de esqueletos, e o cheiro era insuportável, e obviamente eu, de vez em quando, pensava quando iria me juntar a eles, porque a situação era desesperadora. (...) Foi uma situação horrenda, uma coisa horrorosa, tão horrorosa que, ao contrário de Auschwitz, em Bergen-Belsen não ficou nada, depois de três semanas queimaram o campo”, ela lembra.

Nanette supõe que ali foi organizado um contingente de judeus para possíveis trocas de guerra que interessassem aos alemães. Por conta disso, foi permitido que ela mantivesse o passaporte.

Esquálida, ela foi levada pelo Exército de volta à Holanda no meio de 1945, aos 16 anos de idade.

“Em agosto de 1945, eu soube que era a única que tinha sobrevivido, que não tinha ninguém mais. Eu quase enlouqueci. Depois eu me dei conta que a vida continua, que se eu queria viver, eu tinha que assumir o que restou”, sobre o momento em que foi confirmada a morte de sua família.

Nanette Konig (acima) e Anne Frank, estudantes no Liceu Judaico em Amsterdã - Apic/Getty Images/Arquivo Pessoal N. Konig/Editora Universo dos Livros - Apic/Getty Images/Arquivo Pessoal N. Konig/Editora Universo dos Livros
Na página da direita, Nanette Konig (acima) e Anne Frank, estudantes em Amsterdã, retratadas no livro "Eu sobrevivi ao Holocausto" (editora Universo dos Livros)
Imagem: Apic/Getty Images/Arquivo Pessoal N. Konig/Editora Universo dos Livros

Anne Frank, internação em sanatório e vida nova no Brasil

Recuperar-se da crueldade de Bergen-Belsen, ao menos fisicamente, foi um processo que durou três anos, sem medicamentos nem acompanhamento psicológico, em um sanatório na Holanda, aonde a jovem holandesa chegou com tuberculose, pleurite e tifo, como conta em seu livro.

  • “A demora de minha recuperação mostra o quanto os tratamentos em Bergen-Belsen foram brutais, e foi preciso muito esforço e paciência para que eu pudesse superar tudo isso. Havia não só o sofrimento psicológico que eu deveria superar, toda a perda que eu sofri, toda a minha juventude roubada e as cenas do campo que tanto me traumatizaram, mas também as lembranças físicas do campo, que assolavam meu corpo como se nunca quisessem me abandonar.” (trecho do livro)

Ainda hospitalizada, Nanette teve contato com Otto Frank, pai da jovem alemã Anne Frank, que havia sido levada a Bergen-Belsen na mesma época. A história de Anne ficou conhecida no mundo todo com a publicação de seu diário, após o fim da guerra. As duas foram colegas na escola em Amsterdã e se viram algumas vezes no campo de concentração.

Só em meados de 1948 Nanette pôde estar em um lar novamente, desta vez como hóspede de uma enfermeira cristã que conhecia sua família. Ela e o marido se tornaram os tutores da jovem. No ano seguinte, mudou-se para a casa de tios em Londres que haviam escapado dos nazistas. Foi na Inglaterra que conheceu John, seu marido, com quem vive no Brasil desde o início da década de 1950.

John, um rapaz judeu de origem húngara, tinha parentes aqui e veio primeiro, enquanto eles namoravam. Parte de sua família já havia imigrado nos anos 1930.

  • “Não foi simples para John conseguir seu visto brasileiro, justamente porque ele era judeu –na época, o governo brasileiro, presidido por Getúlio Vargas, tinha traços antissemitas. Um primo de John trabalhava no Instituto Biológico de Minas Gerais, e o governador do Estado naquele período era Juscelino Kubitschek. O primo explicou a Juscelino a situação, que deu um cartão com suas recomendações para que conseguissem o visto. (...) Quando apresentaram o cartão no Itamaraty, o funcionário falou depois de alguns rodeios: ‘Olha, o visto dele não saiu ainda porque ele é judeu’. (...) Muitos judeus sofreram situações parecidas ao imigrar para o Brasil: o presidente Getúlio Vargas tinha posturas antissemitas e era simpatizante de Benito Mussolini, o ditador italiano aliado dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, além do próprio Hitler. Nessa época, para conseguir entrar no Brasil, os judeus pagavam alguma quantia ou eram batizados como católicos.” (trecho do livro)

Em São Paulo, Nanette construiu novos caminhos. O casal teve três filhos e se estabeleceu em definitivo no Brasil após algum tempo morando nos Estados Unidos e na Argentina.

“As questões [dos filhos] não faltaram: onde é que está todo mundo? Eventualmente se deram conta que não tinha uma segunda geração, não tinha avós, não tinha primos, não tinha tias, tias-avós... chegou uma hora em que eles perguntaram”, diz Nanette sobre revelar a sua família, por mais assustador que fosse, o drama ao qual havia sido submetida.

Poder explicar o que aconteceu para que isso nunca mais se repita permite a ela combater a ignorância, base ideal para a manipulação de Hitler e de qualquer governo que queira subjugar um povo, na sua opinião.

“Minha função nas escolas aonde vou é, depois que eles ensinam sobre a Segunda Guerra, entro eu para falar sobre o Holocausto. (...) Quem ensina sobre o Holocausto tem de ensinar o contexto, a organização, não adianta só dizer ‘nunca mais’. Nunca mais o quê?”

"A razão de eu ter escrito o livro é: na hora em que eu não estiver mais, pelo menos alguém tem um depoimento", ela diz.

E enquanto ela estiver por aqui, é assim, com esta frase, que gosta de encerrar a conversa: “O preço da liberdade é a eterna vigilância.”