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Enquanto Trump combate ilegais, americanos dão água e tentam evitar mortes dos que cruzam o deserto

Voluntários da ONG Border Angels levam kits de sobrevivência e água para migrantes no deserto da Califórnia - Reprodução/Facebook
Voluntários da ONG Border Angels levam kits de sobrevivência e água para migrantes no deserto da Califórnia Imagem: Reprodução/Facebook

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

13/03/2017 04h00

Enquanto o presidente dos EUA, Donald Trump, se prepara para reforçar a vigilância na fronteira com o México e impedir a entrada de imigrantes ilegais, grupos de direitos humanos tentam assegurar que os que tentam entrar no país pelo deserto não morram de sede, frio ou fome. Eles espalham garrafas de água e kits de sobrevivência nas principais rotas da travessia.

"Cruzar a fronteira pode ser ilegal, mas não deveria ser uma sentença de morte", afirma a ONG Humane Borders (Fronteiras Humanas), com sede no Estado do Arizona, ao defender o trabalho do grupo, que mantém barris de água potável para os ilegais no deserto.

A ONG Border Angels (Anjos da Fronteira), além de garrafas de água, deixa kits com alimento em lata, cobertor térmico, um aquecedor de mãos e um agasalho para baixas temperaturas.

O setor de fiscalização de Tucson, no Arizona, é o segundo com mais mortes nos EUA, segundo dados do governo americano para o ano fiscal de 2016 (entre outubro de 2015 e setembro de 2016). Foram encontrados 84 corpos na região, atrás somente do setor conhecido como "Vale do Rio Grande", no Texas, ao sul da fronteira, na região do Golfo do México, onde foram achadas 130 vítimas.

No total, oficialmente, foram 322 vítimas em toda a fronteira com o México, o maior número desde 2012, quando foram encontradas 471 vítimas. Mas organizações estimam que o número de mortos todos os anos seja muito maior.

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Kit de sobrevivência e água deixados pela ONG Border Angels para migrantes no deserto da Califórnia
Imagem: Reprodução/Facebook

Segundo a Border Angels, desde 1994, mais de 11 mil pessoas morreram ao tentar atravessar a fronteira. A principal causa da morte é exposição ao frio e ao calor --desidratação ou hipotermia.

No terceiro sábado de cada mês, o grupo liderado por Enrique Morones sai de San Diego, na Califórnia, pela manhã em direção ao deserto. Lá, em pequenos grupos, as pessoas percorrem diferentes trilhas usadas por ilegais para deixar os kits preparados pelos próprios voluntários. A água é fornecida pela ONG.

Na última ação do grupo realizada em fevereiro, muitos dos voluntários relataram ter encontrado atos de vandalismo com as doações, como garrafas e galões furados e até um espantalho feito com as roupas deixadas para ajudar os ilegais a sobreviver durante o frio extremo do deserto durante a noite.

Em entrevista ao UOL, Enrique contou que, com as medidas anunciadas por Trump contra imigrantes, o grupo achou melhor fazer algumas mudanças para garantir a segurança dos voluntários, como recusar entre os participantes os cidadãos legalizados pelo DACA --filhos de ilegais que nasceram nos EUA e foram legalizados durante o governo Obama.

Segundo a ONG, apesar de não existir uma medida legal contra eles, o grupo preferiu não arriscá-los durante as ações no deserto com medo de prisões.

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Vandalismo: Espantalho feito com doações de kit deixado para ajudar migrantes a sobreviver no frio do deserto da Califórnia
Imagem: Reprodução/Facebook Alex Figueroa

Para a ação de fevereiro, a primeira desde que Trump assumiu, a Border Angels pediu que cidadãos dos seis países que foram proibidos de entrar nos EUA (Síria, Irã, Líbia, Somália, Sudão e Iêmen) não participassem também por medo das autoridades. Para os voluntários, a orientação é levar documentação que comprove a cidadania americana caso policiais da fronteira interceptem qualquer integrante.

Apesar das restrições, Morones afirma que o número de interessados em participar das ações aumentou. "Se antes tínhamos 50 pessoas, hoje temos 450", disse o coordenador da ONG.

No Arizona, a ONG No Más Muertes estima que, até 13 de dezembro do ano passado, foram distribuídos no deserto 19.444 galões de água e 1.200 kits para ajudar os migrantes a sobreviver --os kits da organização contêm produtos para tratar bolhas nos pés e para purificar água.

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Barril com água potável deixado pela ONG Humane Borders na rota em que os migrantes usam no deserto do Arizona
Imagem: Reprodução/Facebook

Também no Arizona, a Humane Borders afirma que fechou o ano passado com 49 estações de água no deserto do Arizona, que são abastecidas por 55 barris levados por voluntários.
 
Em entrevista ao UOL, Joel Smith, da ONG, explica que cada barril é posicionado com base no mapeamento de onde os corpos são encontrados. Assim, é possível determinar as rotas mais usadas e onde as pessoas correm mais riscos de morrer de desidratação.

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Voluntários da ONG South Texas Human Rights abastecem uma das estações de água com galões para migrantes
Imagem: Reprodução/Facebook

No Texas, na região do Golfo do México, a ONG South Texas Human Rights (Sul do Texas Direitos Humanos) utiliza o mesmo esquema de estações de água abastecidas por barris. Eles possuem 90 estações instaladas em ranchos, propriedades privadas por onde os migrantes passam. Tudo é feito com a permissão dos donos das terras.

Encontro com ilegais

A Humane Borders afirma que não é ilegal dar água, alimento, roupas e cobertores aos migrantes. É permitido ainda dar primeiros socorros para pequenos ferimentos --são levados kits com medicamentos nos caminhões durante as ações no deserto. E se um migrante pedir ajuda para entrar em contato com um parente, para avisar de sua situação, também não há problema.

O que é crime é ajudar um migrante com carona ou a fugir das autoridades, e o voluntário pode enfrentar acusações na Justiça. No caso de encontrar algum ilegal correndo risco de morte, o voluntário deve avisar a polícia da fronteira --neste caso, é permitida a carona até o posto policial mais próximo ou a um hospital, desde que avise por telefone os policiais fronteiriços sobre o ocorrido.

Mortos e feridos no deserto

Em uma das ações da No Más Muertes no Arizona no meio de dezembro, foram encontrados quatro corpos em uma área montanhosa e remota do Estado, no chamado "corredor de Ajo", uma região desértica com pouquíssimas fontes de água e sombra, com temperaturas altas durante o dia e baixíssimas durante a noite. Além disso, voluntários costumam ter a entrada vetada nesta região.

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Galões de água potável deixados no deserto por voluntários da ONG No Mas Muertes no Arizona
Imagem: Reprodução/Facebook

No fim de 2016, o grupo publicou ainda um relatório criticando a abordagem da polícia fronteiriça aos migrantes, afirmando que muitos morrem ou são feridos até mesmo gravemente durante a perseguição.

Entre os exemplos citados está o uso de taser (armas de choque) contra pessoas desidratadas, o que poderia afetar o coração, cães que mordem e arrastam pessoas, e o uso de táticas de perseguição e dispersão com helicópteros para separar os grupos de ilegais, fazendo com que as pessoas se percam no deserto e morram de sede ou frio.

Duas ONGs, a Humane Borders e a Coalición de Derechos Humanos, fazem o registro dos corpos encontrados no deserto no Arizona. Elas guardam, quando é possível, os nomes, idade, local e estado em que o corpo foi encontrado e a provável causa da morte --na maioria dos casos, hipotermia. Alguns nunca terão a causa da morte ou a identidade determinados, já que muitas vezes é encontrado apenas o esqueleto.

Apoio na busca aos desaparecidos

Além da compilação de dados, a Coalición de Derechos Humanos tem um trabalho de apoio aos familiares dos ilegais desaparecidos, a maior parte deles no México. Quando a família entra em contato com a ONG em busca de ajuda para encontrar o parente que não deu notícias, voluntários orientam nas buscas em centros de detenção e institutos forenses.

Michelle Raygada, da ONG, explicou ao UOL por e-mail que o grupo também colhe informações que podem ajudar os médicos forenses a identificar algum desaparecido. Além disso, os voluntários atuam como mediadores entre as famílias e os responsáveis pela identificação dos corpos.  

Nos casos que envolvem prisões, representantes da ONG auxiliam as famílias a entrarem em contato com os consulados, centros de detenção, prisões, escritórios de imigração e hospitais na tentativa de localizar os migrantes desaparecidos. Quando são informados de que alguém foi deixado para trás ou se perdeu no deserto, com o consentimento da família, alertam policiais e autoridades sobre o desaparecimento e a necessidade de ajuda --mas a própria ONG diz que estes esforços costumam ser infrutíferos. 

Michelle diz ainda que a ONG agora está se reorganizando, em preparação para as deportações em massa prometidas por Trump.

"Como pessoas que vivem na fronteira, vemos a criminalização das nossas comunidades pelas polícias do governo, o que está causando cada vez mais mortes no deserto", diz Michelle, ao criticar a violência da atuação das autoridades na busca por ilegais.