Perseguidos pelo EI no Egito, coptas no Brasil rezam por terroristas: "São pessoas vazias"
Repicam os sinos, programados automaticamente. Passa a aeronave, com forte rumor, voando baixo. São 18h no interior da igreja de São Marcos, sede da Igreja Copta Ortodoxa no Brasil, localizada numa construção ampla no bairro do Jabaquara, zona sul de São Paulo, junto do aeroporto de Congonhas. É o único templo copta no país.
O bispo Aghason é uma figura de barba e sobrancelhas longas e grisalhas ligeiramente desgrenhadas. Traja vestes litúrgicas: a batina preta recobre o corpo, e o "metran", chapéu redondo usado por bispos, e o "okelnsoa", touca dos monges, encobrem a cabeça. Ele traz no peito uma medalha com a imagem de Maria e o menino Jesus no colo.
Egípcio naturalizado brasileiro, dá início à oração especial por ocasião da Semana Santa. É uma das principais celebrações do calendário cristão dessa igreja, fundada no século 4, em Alexandria (Egito), por São Marcos evangelista. Aghason é auxiliado no serviço sagrado pelo padre Mikhail, mais conhecido por aqui como Miguel, egípcio também naturalizado brasileiro.
A igreja é retangular, de paredes e teto claros, com quadros singelos nas laterais retratando sobretudo a vida de Jesus Cristo no estilo da arte oriental, com predominante tom dourado, sem efeitos de perspectiva. Há 11 bancos de madeira distribuídos horizontalmente de cada lado da igreja, com um corredor no meio; há outros três de cada lado, distribuídos verticalmente, na parte da frente. Atrás está o altar, com um painel de madeira entalhada com mais figuras religiosas, que leva o nome de "iconostasis".
A oração evolui. Não há ninguém no interior da igreja além de Aghason e Miguel. Não chegou nenhum fiel (serão apenas três mulheres presentes ao longo da celebração). Composta também de cânticos, é celebrada em três línguas: o copta, língua egípcia antiga, hoje usada apenas liturgicamente; em árabe; e em português. Os fiéis acompanham a liturgia numa espécie de libreto, de folhas de papel impressas reunidas.
Justiça divina
Quanto à situação política no país de origem, Aghason diz ser "muito complicada" e cita o afastamento de dois presidentes nos anos recentes, Hosni Mubarak, em 2011, durante a Primavera Árabe, e Mohammed Mursi, em 2013. "Al-Sisi [o presidente atual, Abdel Fattah al-Sisi] recebeu o país rasgado. O trabalho [a fazer] é muito grande, não é fácil".
Sobre os autores dos atentados contra os coptas, o religioso afirma que são "pessoas vazias". "O Egito está cheio de fanáticos e terroristas, há falta de coração e de amor. Não sabem o significado do que é amar o outro. São pessoas vazias. Não existe um Deus que mande fazer uma coisa como essa. Sofreram lavagem de cérebro. Coisa muito triste", avalia. 'Vi cenas [dos ataques] no Youtube. Uma mãe perdeu a perna e bem na frente dela perdeu o filho. Não aguentei, comecei a chorar."
Aghason diz estar "rezando para um mundo melhor". "O nosso amor é sem fim, para o mundo inteiro, para quem faz 'bom' e para quem faz mal", diz, trocando aqui e ali uma palavra ou gênero, em português ainda com forte sotaque árabe.
Confia na Justiça de Deus, assim avisando os seguidores do Estado Islâmico: "No dia da Justiça [Juízo Final], cada um vai pagar pelo que fez". E garante que os coptas não recuarão, mais uma vez: "Ninguém tem medo de nada. O fim de todos nós é o mesmo, a morte. E quem tem medo da morte não precisa viver. Homens ricos, homens pobres, homens bons, homens maus, homens bonitos, homens feios, todo mundo vai ficar a mesma coisa na morte".
Aghason diz também crer no sucesso da viagem do papa Francisco, que vai ao Egito nos dias 28 e 29 deste mês para visitas ao papa copta ortodoxo, Teodoro 2º, e ao presidente al-Sisi. "Nosso presidente saberá controlar a situação." O papa Francisco vai ao Egito com o lema "O papa da paz no Egito da paz" sem especificar locais dos encontros, como medida de segurança.
Uma história de fé
"Desde criança eu adorava igreja. As fiéis 'é' meu coração", diz Aghason.
Natural de Qena, cidade ao sul do Egito, onde nasceu a 12 de novembro de 1955, é bispo há 11 anos e monge há 25. O ano que marca o ingresso formal na vida religiosa é 1963. O desenho de uma cruz e esse ano, em árabe, estão marcados no punho direito, na pele. "É um tipo de sinal da nossa fé, não é tatuagem, como vocês dizem. Tudo começa com o sinal da cruz. Uns fazem pequeno, outros fazem grande."
Aghason se formou químico, cursando faculdade no Egito, e depois viveu por três anos nos Estados Unidos, entre 1984 e 1987, onde concluiu seus estudos. Em junho de 1988, entrou para a vida monástica e estudou por quatro anos para ser monge. Em 1992, feito monge, seguiu para um mosteiro no Mar Vermelho. E, no ano seguinte, 1993, ordenado padre, veio para o Brasil com a missão de "servir os egípcios que vivem no Brasil e outros fiéis brasileiros".
"Adoro o Brasil desde que cheguei aqui, porque a cultura é muito próxima da nossa cultura no Egito. Os brasileiros são como nós: amorosos, carinhosos, sempre têm um sentimento bom, uma alma 'bom'", elogia.
Seu primeiro endereço no Brasil foi o Mosteiro de São Bento, claustro católico localizado no Largo de São Bento, no Centro de São Paulo. Ali ficou um ano, para viver depois numa quitinete na avenida Paulista.
Em 1997, se mudou para a construção onde fica a igreja copta ortodoxa de São Marcos, que era originalmente uma casa de família. Ali Aghason começou sua pregação, conciliando moradia com orações no mesmo local. Depois, adquirida por sua igreja, a casa recebeu uma série de obras, com a construção da igreja separadamente e a casa do bispo ao fundo, onde mora.
Neste fim de tarde há um aroma de comida que domina o ar, misturado aos cheiros de incenso e mirra das celebrações. É a comida que Aghason prepara. O bispo é quem cuida dos afazeres domésticos e também litúrgicos, responsabilizando-se inclusive pela limpeza dos locais, junto com o padre Miguel. "Levo a vida normal de qualquer pessoa, não tem moleza, não." Uma faxineira é contratada apenas para dias de grandes celebrações.
'Praias cheias, igrejas vazias'
Mas com os brasileiros diz ter adquirido uma mágoa, por identificar certa frouxidão nacional com a religião: "Aqui no Brasil as regras não são as regras. As pessoas vêm e voltam quando querem. Aparecem numa semana, não aparecem na outra. Vêm um mês, somem três meses". Compara com o copta egípcio, que diz ser mais assíduo: "Adoram ficar na igreja, ficam horas e horas [rezando], passam dias na igreja. As igrejas vivem cheias. Mas aqui, no Brasil, que se chama um 'país católico', não."
Evolui sua súplica por mais ardor na fé: "As pessoas não têm o significado da Semana Santa. É uma dor que não sai do meu coração há 24 anos. As praias, sim, estão cheias, mas as igrejas estão vazias. Você vai agora para Santos, Guarujá [cidades no litoral sul de São Paulo], e tudo está cheio lá. É triste. Essa época é a melhor do ano inteiro, porque lembra a crucificação do nosso salvador."
Para o bispo, "as famílias não ensinam [o valor da religião], e a igreja está dormindo". Ele convoca à ação: "Acorda! Especialmente em dias ruins como os nossos, de violência, as igrejas precisam acolher os fiéis e deixar do lado de dentro da igreja. A igreja é a casa de Deus, um lugar sagrado. Mundo inteiro vem para a igreja, recebe paz, alegria. Eles ganham e distribuem para os outros, cada um ensina o que aprendeu aqui para o outro."
"Nossa igreja vive sem propaganda, é séria, antiga, rígida. Nossa igreja tem muito sabor, é conservadora. Não pede dinheiro para ninguém. Uma coisa bem boa", diz.
E resume: "É preciso esperança, alegria e também paciência. Sem elas não se vive. Deus nunca larga a gente".
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