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Venezuela reinventa o trabalho para enfrentar fuga de talentos e mão de obra

31.out.2017 - Funcionário trabalha no prédio da administração da Assembleia Nacional, em Caracas - Meridith Kohut/The New York Times
31.out.2017 - Funcionário trabalha no prédio da administração da Assembleia Nacional, em Caracas Imagem: Meridith Kohut/The New York Times

Yelitza Linares*

Colaboração para o UOL, em Caracas

10/03/2018 04h00

A Venezuela não perde com a diáspora só os mais qualificados. No último ano, saíram do país bacharéis e formandos, funcionários públicos, técnicos e operários. Os empregadores oferecem alternativas para manter os que restam.

Jennyfer Ortega tem 22 anos, vive no bairro Unión de Petare, o setor mais populoso de Caracas, a capital. Ela está no terceiro trimestre de estudos internacionais na Universidade Santa María e trabalha como assistente administrativa na Prefeitura de Sucre, para poder pagar os estudos.

É um caso raro na Venezuela. Ela não tem planos de emigrar do país, mas toda semana, segundo conta, se despede de pelo menos duas pessoas de seu bairro que decidiram morar no exterior, em busca de melhores oportunidades.

Não são mais só vizinhos e amigos. Em dezembro e janeiro tive de me separar de parentes. É inevitável que meu coração fique partido

Jennyfer Ortega

A emigração maciça de venezuelanos no último ano já tem efeitos que se percebem na vida cotidiana do país.

Nas universidades, há classes com poucos alunos e laboratórios fechados ou linhas de pesquisa suspensas por falta de professores. Nos bairros modernos de classe média, há prédios com mais apartamentos escuros à noite, e dos iluminados é quase certeza que um dos ocupantes já foi embora.

Nas empresas, a rotatividade dos empregados e a substituição de cargos se transformou no principal problema dos departamentos de recursos humanos. Nos colégios e locais de trabalho, são frequentes as despedidas de alunos, professores e colegas de trabalho.

Inclusive nas empresas estatais e na administração pública o fenômeno também começa a ser uma dor de cabeça para os empregadores. Neste mês foram reiteradas as informações dos sindicatos sobre demissões maciças de engenheiros, técnicos e operários da estatal de petróleo, PDVSA, muitos dos quais vão para outros países à procura de melhores rendimentos.

venezuela petróleo 1 - Jorge Silva/ Reuters - Jorge Silva/ Reuters
Funcionários trabalham no campo de petróleo de Cabimas, na Venezuela
Imagem: Jorge Silva/ Reuters

É o caso do Centro Refinador Paraguaná, em cujos portões nas madrugadas não há mais trabalhadores à espera de contratos. A principal refinaria onde se produzia a gasolina consumida no país e para exportação está desolada.

Não são mais só gerentes ou engenheiros que partem, mas também técnicos e operários, que não aguentam viver com um salário de US$ 4 (R$ 13). Isto está morto, e o pior é que estão substituindo os que partem por jovens sem experiência e formação

Carlos Colina, presidente da Federação de Trabalhadores do Estado de Falcón

O fenômeno da emigração ou diáspora na Venezuela não é novo. Começou a conta-gotas na década de 1990 e foi se acelerando ao longo do governo Chávez. Nas primeiras levas, os que deixavam o país eram altamente qualificados. O jornalista Carlos Subero registrou em seu livro "La Alegría Triste de Emigrar" que em 2010 só o governo do Canadá havia admitido como imigrantes 45 engenheiros venezuelanos entre 25 e 44 anos.

Mas essa fuga de talentos se acentuou em 2017, e neste ano já se fala em deslocamentos forçados de pessoas de todas classes sociais e níveis educacionais. Sobre os números de emigrantes não há consenso. À falta de informação oficial acessível na Venezuela, porque o Instituto Nacional de Estatísticas não fornece essa informação, restam as pesquisas, estudos e projeções de pesquisadores acadêmicos ou consultores.

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A Pesquisa Nacional de Vida de 2017, realizada pelas Universidades Central da Venezuela, Simón Bolívar e Católica Andrés Bello, revelou nesta semana o número mais conservador: 1.421 pessoas foram viver em outro país entre 2012 e 2017. Enquanto isso, o Observatório da Diáspora Venezuelana, coordenado pelo sociólogo Tomás Páez, havia relatado antes que há 2,7 milhões de venezuelanos em 93 países. A população venezuelana é de mais de 30 milhões.

O estudo das universidades indica que 80% dos que emigraram nos últimos cinco anos o fizeram entre 2016 e 2017, e o principal motivo foi procurar trabalho ou que já o haviam conseguido. Há um leve predomínio de homens, e a grande maioria (88%) estão em idade produtiva, entre 15 e 59 anos.

Os venezuelanos foram bem recebidos em alguns países da região, porque quase a metade dos que emigraram têm estudos universitários. Mas isso começou a se diversificar: quase um terço da população que se deslocou só conseguiu terminar o segundo grau, conforme dados da Encovi.

De acordo com essa pesquisa, 675.771 famílias (9,5% da amostragem) são receptoras de remessas ou têm parentes que emigraram. Na maioria, 58% dos consultados pelo menos, e a diferença do último ano é que esse fenômeno também é vivido nos setores mais pobres. Há famílias que com US$ 100, US$ 30 ou US$ 20 enviados por seus filhos vivem com relativa comodidade; e já se começa a notar a diferença entre os que recebem essa renda e os que não.

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Trabalhador conserta cerca de supermercado que foi destruída durante saque, em Puerto Ordaz
Imagem: William Urdaneta/ Reuters

O grupo familiar de María Sonia Ramírez Estrada é um dos que recebe esse dinheiro enviado por emigrantes a seus lares na Venezuela. Ela é enfermeira e mãe de dois rapazes, um de 24 e outro de 30 anos. Sua casa, no bairro Ruperto Lugo, no oeste de Caracas, deixou de estar cheia de gente e hoje está quase vazia. Em dezembro, seus filhos se despediram e tomaram um ônibus que os levaria a Buenos Aires. Saíram por San Antonio de Táchira, na fronteira com a Colômbia, e vão demorar mais de seis dias para chegar à capital argentina.

Ramírez conta que seu filho menor estudava [curso de técnico em] prótese dentária e o maior estudou engenharia de computação, mas nunca exerceu a profissão. Trabalhou em empresas bancárias e de seguros, e com seu pai como motorista em uma empresa de transporte de passageiros de propriedade da família.

Mas a mudança de ocupação também não bastou para que Renzo Estrada pudesse alimentar seus dois filhos e a mulher, e por isso decidiu deixar o país, levando a mulher e o irmão menor. A casa em Ruperto Lugo deixou de ser habitada por sete pessoas para conter apenas María, seu marido e dois netos.

Não nego o vazio que sinto, mas desde janeiro em minha casa comemos mais, graças às remessas que meus filhos enviam. Eles trabalham em um cibercafé em Buenos Aires

María Sonia Ramírez Estrada

Novos destinos e perfis

A diáspora venezuelana também mudou de destino. Inicialmente os países receptores eram os EUA, a Espanha e a Colômbia, mas no último ano se desloca para Colômbia, Peru, Chile, Argentina e Equador, o que se transformou num problema para os países, especialmente os fronteiriços, dadas as condições precárias em que se deslocam para essas regiões.

Armando Castillo é um artista visual venezuelano que foi com sua mulher de ônibus para Buenos Aires. Seu nome é fictício a pedido dele. Vem de uma família de esquerda e se autodefine politicamente como "um chavista decepcionado". Diz que nunca votou em Hugo Chávez, mas acreditou em suas promessas de trabalhar a serviço dos despossuídos.

A proximidade de projetos culturais ligados ao ex-prefeito metropolitano Juan Barreto o levou a ver como o dinheiro público era mal gasto em atos privados e ostentatórios.

"Isso me levou a me separar do chavismo. Os últimos cinco anos do governo de Chávez foram uma ficção", declara. "Desapropriações que não foram auditadas e acabaram com o setor produtivo, somadas à corrupção, geraram uma deterioração social insuportável."

Castillo começou a ter dificuldades econômicas e teve de demitir seus cinco empregados no estúdio de fotografia que tinha em Caracas. Mas o estopim de sua partida foi quando roubaram de seu carro o equipamento de iluminação, que não poderia repor. "Além disso, eu estava estagnado artisticamente em Caracas e quis me alimentar da cultura de outro país", acrescenta.

construção trabalhador venezuela - Adriana Loureiro/ Reuteres - Adriana Loureiro/ Reuteres
Operários trabalham na obra de uma nova infraestrutura em um campo de golfe expropriado, em Caraballeda
Imagem: Adriana Loureiro/ Reuteres

Ele está há um ano na Argentina, onde começa a retomar seus projetos de arte. É mais um venezuelano que envia fundos para seu filho em Caracas. Seu irmão, outro emigrante no Chile, manda dinheiro para seus pais, que vivem na Colonia Tovar.

A Venezuela nunca tinha vivido uma situação de emigração maciça de habitantes. Ao contrário, a população se acostumou a receber, em diferentes épocas, os imigrantes do pós-guerra na Europa, os que fugiram das ditaduras no Chile, na Argentina e no Uruguai e os deslocados pela guerrilha colombiana.

Amalio Belmonte, sociólogo e secretário-geral da Universidade Central da Venezuela (UCV), lembra que a partir do momento em que o presidente Chávez começou a desqualificar publicamente os médicos, alegando que tinham valores capitalistas, começou uma nova onda de emigração, desta vez dos profissionais de saúde. Depois foram os engenheiros e outros profissionais se incorporaram.

Todo venezuelano com uma profissão universitária tem como projeto sair do país. O pior é que está incidindo nos que não terminaram os estudos. Muitos jovens emigraram antes de se formar, para buscar algum trabalho com melhor remuneração para apoiar suas famílias na Venezuela. Antes, os estudantes com melhores notas saíam para se especializar com pós-graduações no exterior. Os que emigram hoje buscam a subsistência

Amalio Belmonte

Belmonte explica que da UCV também renunciaram entre 800 e mil professores, muitos dos quais deixaram o país ou se dedicaram a outras funções. Um docente universitário com pós-doutorado está ganhando entre US$ 6 e US$ 7 por mês (cerca de R$ 20 a 23). Só no Haiti ganham menos. O professor afirma que essa diáspora de estudantes e professores é pior na Universidade dos Andes e na do Estado fronteiriço de Zulia.

"Na UCV esse fenômeno é recente. A partir do segundo semestre do ano passado tivemos de fundir cursos e chamar estudantes que estavam na lista de espera para ingressá-los na universidade. Agora é muito provável que dentre os admitidos em uma prova interna a metade tenha deixado o país e outra grande parte não formalize a inscrição por outras razões. Isso nos levou a aceitar os de perfil menor."

Isso sem contar que também estão emigrando os empregados médios da universidade. E não importa a área. Qualquer trabalho de muito pouca demanda profissional tem melhor remuneração do que a oferecida nas instituições acadêmicas.

Os grupos mais bem formados se sentem excluídos. Não têm confiança no que poderiam realizar para utilizar seus conhecimentos. Os mecanismos de ascensão social na Venezuela estão muito deteriorados. Os jovens não percebem a educação como um mecanismo para viver melhor no país. Por isso vão embora.

Amalio Belmonte

Não só os jovens partem. Famílias inteiras emigram, como a de Génesis Yovine Pineda, 22, uma comunicadora social recém-formada na Universidade Católica Andrés Bello, que em setembro de 2017 pegou as malas com seus pais e um irmão e foram morar em Miami, nos EUA. Sua casa, onde viveu desde os 11 anos, no setor El Retiro de San José de Cotiza, no centro de Caracas, ficou fechada e vazia.

Ela conta que pouco depois das eleições da Assembleia Nacional Constituinte, em julho de 2017, seus pais perderam a fé no país. Sua situação econômica se tornou insustentável e sentiam cada vez mais medo da insegurança no bairro.

Por um lado, se comprávamos carne, devíamos prescindir do frango, apesar de três integrantes da família termos renda. E houve muitos dias em que quisemos sair correndo dali. Cada dia crescia a angústia de que entrariam em nossa casa para roubar

Génesis Yovine Pineda

Melhores condições salariais

Enquanto o governo não admite o problema, universidades privadas, como a Metropolitana e a Católica Andrés Bello, e as próprias empresas buscam saídas para frear a fuga de talentos.

Na Ucab, onde a rotatividade de pessoal é mais baixa que nas públicas --entre 12% e 17%--, foi mais fácil substituir os que partem: "Mas o perfil de substituição é menor. Estamos perdendo os docentes de maior qualidade e dedicação, e é difícil substituí-los com a mesma formação e experiência", diz Josué Bonilla, diretor de recursos humanos dessa universidade.

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Médicos examinam criança em hospital pediátrico universitário em Barquisimeto
Imagem: Meridith Kohut/The New York Times

A estratégia para manter o pessoal inclui aumentos salariais agressivos, quase mensais; bonificações que não têm impacto nas contribuições sociais, planos de desenvolvimento profissional e um programa de pagamento de bônus em dólares para certos professores de alto nível, que obtiveram através de doações.

A mesma situação é vivida nas empresas, onde a alta rotatividade de pessoal no último ano obrigou muitos proprietários a reduzir seus lucros, a implementar políticas agressivas de aumentos salariais e sobrecarregar de trabalho os que ficam.

Adriana Peña é gerente de talento humano no Grupo Ferrara, empresa que se dedica à importação de fogões e armários de cozinha italianos e que no final de 2017 tinha 293 funcionários. Hoje são 268. Conta que entre dezembro passado e janeiro recebeu 53 pedidos de demissão de trabalhadores, dos quais 30% são casos de emigração; a maioria são profissionais entre 28 e 35 anos, com três ou quatro anos de experiência.

Não é fácil substituir rapidamente as vagas. Nossa grande preocupação é o que fazer para reter os talentos. Não podemos competir com o desejo das pessoas de deixar o país, mas procuramos manter os que querem ficar porque, além disso, ficam com uma carga maior, porque há cargos que não estamos substituindo

Adriana Peña

Peña implantou outras estratégias que atendem ao bem-estar dos trabalhadores. "Implementamos os 15 minutos diários de descanso, que cada gerente aplica em sua área. Servem para que as pessoas esgotem o estresse gerado por problemas para conseguir comida e enfrentar as falhas no serviço de transporte."

Rafael Ernesto Díaz, consultor na área de recursos humanos, teve de lidar com a fuga de talentos em vários tipos de empresas. "Enfrento o problema cada vez que vou buscar perfis em minha base de dados e descubro que saíram do país."

Ele afirma que antes demorava uma semana para captar um talento; hoje, com a diáspora, pode levar um mês e meio.

Estamos sacrificando os perfis, baixamos a exigência em dois níveis, buscamos adultos mais velhos que não tenham ambições de ascensão profissional, formamos geração de substituição dentro da própria companhia, e as empresas que têm possibilidades estão oferecendo bonificações em dólares para cargos chaves para a firma

Rafael Ernesto Díaz

Díaz recomendou às empresas que não podem pagar melhores salários que sejam flexíveis na contratação de talentos e trabalhem por metas ou projetos, com terceirizados trabalhando à distância e sem horário. Há negócios de pagamento reduzido em que foi implementado o benefício da cesta de alimentos, semelhante à entregue pelo governo.

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Empregado faz barra de chocolate em fábrica em Caracas
Imagem: Carlos Garcia Rawlins/ Reuters

Nem todos vão embora

Embora fique a sensação de que o país parece uma casca vazia, são muitos os profissionais que preferem permanecer no país, apesar das dificuldades, por vários motivos: a ligação com seu lugar de origem, porque se abrem oportunidades de trabalho ou porque têm uma trajetória profissional percorrida e não querem começar do zero.

O consultor Rafael Díaz comentou que há profissionais entre 40 e 55 anos que enviaram seus filhos ao exterior e estão montando empresas de tecnologia que funcionam como terceirizadas para firmas no exterior.

Também há jovens trabalhando de maneira remota com empresas estrangeiras que lhes pagam em dólares por trabalhos na área de programação e desenvolvimento, design e comunicação.

Outros, como Jennyfer Ortega, a mesma com que começou esta história, se negam a emigrar porque se sentem em dívida com o país. Ela acredita firmemente que as pessoas que ficam trabalhando duro para reconstruir o que está danificado podem gerar a tão ansiada virada econômica.

Há três meses Jennyfer fundou no bairro em que reside, a zona popular de Petare, uma associação civil que chamou de "Venezuela Mía", cujos integrantes realizam atividades sociais, esportivas, culturais e formativas dedicadas aos que têm menos.

Meu bairro não está vazio, e ainda falta muito para que fique assim. Na Venezuela tenho meus estudos, minha fundação, meus projetos pessoais. Só espero que chegue um momento em que os que foram embora decidam voltar para reconstruir a terra que nos viu nascer

Jennyfer Ortega

* Colaborou Daisy Galaviz