Topo

Na fronteira, missionários tentam espalhar o cristianismo pela Coreia do Norte

Chinês caminha em frente a uma igreja na fronteira com a Coreia do Norte	 - Ng Han Guan/AP
Chinês caminha em frente a uma igreja na fronteira com a Coreia do Norte Imagem: Ng Han Guan/AP

Da AP

06/04/2018 04h00

Para os norte-coreanos que estão sob um crucifixo em um apartamento na região fronteiriça do nordeste da China, ela é conhecida como mãe. Ela os alimenta, lhes dá um lugar para ficar e, de vez em quando, distribui dinheiro.

Em contrapartida, a mulher coreana-chinesa de 69 anos lhes pede que estudem a Bíblia, rezem e cantem hinos. Ela também tem um objetivo mais ambicioso e potencialmente perigoso: ela quer que os convertidos de maior confiança retornem à Coreia do Norte e espalhem o cristianismo por lá.

Ao longo da fronteira da Coreia do Norte, dezenas de missionários estão engajados no trabalho que os coloca, junto a seus convertidos norte-coreanos, em perigo. A maioria dos religiosos é composta por sul-coreanos, mas alguns, como a mulher, são coreanos étnicos cujas famílias vivem na China há gerações.

Nos últimos anos, dez missionários e pastores da linha de frente do grupo morreram misteriosamente, de acordo com o reverendo Kim Kyou Ho, chefe do Chosen People Network em Seul, um grupo cristão que dirige um memorial, na capital da Coreia do Sul, para as vítimas. A Coreia do Norte é suspeita de ter causado todas essas mortes.

Centenas de outros missionários foram aprisionados ou expulsos pela China, que proíbe os estrangeiros de fazer propaganda.

É um trabalho perigoso. Li Baiguang, um advogado chinês dos direitos humanos cujo o trabalho de defender pastores e fazendeiros cristãos o fez ser ameaçado de morte repetidas vezes, morreu em 26 de fevereiro, horas após ter sido internado em um hospital militar chinês para tratar uma simples doença de estômago, segundo seus parentes.

8.mar.2018 - Eric Foley, fundador da Voz dos mártires da Coreia, mostra foto de pastor coreano encontrado morto - Hyung-Jin Kim/AP Photo - Hyung-Jin Kim/AP Photo
Eric Foley, fundador da Voz dos mártires da Coreia, mostra foto de pastor coreano encontrado morto
Imagem: Hyung-Jin Kim/AP Photo

O caso foi alvo de apelos para uma investigação independente da Anistia Internacional e da organização baseada em Washington chamada de National Endowment for Democracy (doação nacional para a democracia), que afirmou que Li já havia sido "detido e fisicamente atacado muitas vezes" por causa de seu trabalho. A organização contou que ele parecia estar com boa saúde.

A mulher coreana-chinesa disse que é monitorada pelas autoridades de Pyongyang e Pequim, no entanto, apesar dos riscos, ela realizou 20 anos de trabalho missionário com norte-coreanos, na maior parte mulheres que estão na China legalmente após conseguirem vistos para visitar parentes que moram lá.

"Eu sempre rezo e estou com Deus, então não estou preocupada", disse a mulher, que, apesar dessa afirmação, pediu que seu nome não fosse publicado por causa de preocupações com a própria segurança e a de sua família e dos norte-coreanos a quem ela prega.

Ela vive tão perto da Coreia do Norte que é comum ver mulheres roupas do outro lado do rio Yalu ou trabalhadores andando de bicicletas em frente a edifícios norte-coreanos degradados, a uma distância tão próxima que é possível acertar o local arremessando uma pedra.

Os missionários da fronteira fornecem quartos aos seus visitantes norte-coreanos e, para aqueles que estão fugindo, até mesmo um esconderijo. Em contrapartida, pedem que eles memorizem o Pai Nosso, o Credo dos Apóstolos e outras orações. Alguns dos convertidos de maior confiança voltam para casa, na Coreia do Norte, e secretamente compartilham o que aprenderam, às vezes levando consigo bíblias.

É quase impossível determinar o que acontece quando os norte-coreanos voltam para casa para evangelizar. Para quem fica do lado de fora, não há nenhuma indicação que o cristianismo cresceu de maneira séria no Norte nos últimos anos. Nem mesmo dá para saber se a religião está ajudando a agitar o governo norte-coreano de Kim Jong-un.

3.abr.2018 - Reverendo Kim Kyou Ho, desertor da Coreia do Norte que agora é pastor em Seul - AP Photo/Ahn Young-joon - AP Photo/Ahn Young-joon
Reverendo Kim Kyou Ho, desertor da Coreia do Norte que agora é pastor em Seul
Imagem: AP Photo/Ahn Young-joon

O Norte acusa a agência de espionagem da Coreia do Sul de usar os missionários para coletar informações sobre o programa nuclear secreto norte-coreano e outros tópicos sensíveis, bem como para contrabandear materiais de propaganda por meio de folhetos, CDs e pen drives, e para construir igrejas secretas com o objetivo de minar a liderança de Kim. O governo de Seul nega fortemente essas alegações.

Pelo menos dois pastores sul-coreanos foram detidos no Norte sob essas acusações.

Oficialmente, a Coreia do Norte afirma que garante a liberdade de religião para seus 24 milhões de habitantes. Mas, na realidade, as pessoas envolvidas na distribuição de bíblias, serviços secretos de oração e redes de igrejas subterrâneas são aprisionados ou executados, de acordo com ativistas e desertores. O Norte tem cinco igrejas sancionadas pelo governo em Pyongyang, mas os críticos dizem que são instalações falsas abertas apenas para visitantes estrangeiros.

Foto mostra retrato do reverendo Han Chung-ryeol, morto na cidade de Changbai, na China - Ahn Young-joon/AP - Ahn Young-joon/AP
Foto mostra retrato do reverendo Han Chung-ryeol, morto na cidade de Changbai, na China
Imagem: Ahn Young-joon/AP
Pastor foi morto em Changbai

Entre os missionários e pastores mortos em circunstâncias misteriosas nos últimos anos está o reverendo Han Chung-ryeol, um pastor chinês de ascendência coreana que liderou uma igreja na cidade fronteiriça chinesa de Changbai antes de ser encontrado morto com ferimentos de faca e o crânio perfurado em abril de 2016, levantando suspeitas de que a Coreia do Norte estava envolvida.

A polícia chinesa disse recentemente à família do pastor morto que uma câmera de vigilância capturou imagens de três homens e uma mulher, suspeitos de serem agentes norte-coreanos, atravessando a fronteira antes e após o assassinato do reverendo de 49 anos, afirmou Han Songshi, irmã do religioso, à Associated Press. Ela disse que as autoridades chinesas contaram à família que o Norte não respondeu aos pedidos para extraditar os suspeitos.

Em vez disso, a Coreia do Norte enviou uma carta para o escritório estatal de assuntos religiosos em Changbai dizendo que tinha prendido um dos diáconos da Igreja de Han, Zhang Wenshi, e que o condenou a 15 anos de trabalho forçados, de acordo com duas pessoas com conhecimento direto do caso que falaram sob condição de anonimato, temendo retaliação da Coreia do Norte e da China.

Em uma cópia da carta obtida pela AP, a Coreia do Norte acusou Zhang de conspirar com Han em um complô para evangelizar os norte-coreanos, os levando para fora do país. Mas a carta não chega a reconhecer que agentes norte-coreanos mataram Han.

Um porta-voz do departamento de polícia de Changbai não confirmou os relatos da família, dizendo apenas: "não temos obrigação de divulgar os detalhes da investigação aos meios de comunicação." Um site estatal norte-coreano negou qualquer envolvimento no assassinato de Han, acusando o governo da Coreia do Sul de estar por trás de um esquema para promover ideais anti-Pyongyang.

Embora Han fosse pouco conhecido da imprensa internacional antes de sua morte, ele era uma figura importante no trabalho arriscado e encoberto para promover o cristianismo no Norte, que enxerga esse tipo de esforço como um plano conduzido pelo Ocidente para derrubar seu governo. Em uma igreja oficial do governo chinês em Changbai, onde o pastor trabalhava desde o início da década de 1990, ele alimentou e abrigou milhares de norte-coreanos ao longo dos anos, muitos dos quais haviam fugido do país atingido pela fome em busca de alimentos e empregos -- enquanto também aproveitava para converter centenas deles para o cristianismo.

Eric Foley, o co-fundador americano da Voice of the Martyrs Korea (voz dos mártires da Coreia), um grupo cristão sem fins lucrativos de Seul, que forneceu financiamento, bíblias e outros recursos para o trabalho de Han, disse que acredita que as autoridades chinesas não se importavam com o proselitismo do pastor porque consideravam seu trabalho de caridade como um "serviço social" que ajudou a dissipar problemas potenciais como o crime, o desemprego e a falta de moradia entre os norte-coreanos que foram para Changbai.

"Isso permitiu a Han fazer esse trabalho em um volume que era incomparável de qualquer lado da fronteira", disse Foley. Ele insistiu, entretanto, que Han não facilitou as deserções de norte-coreanos para a Coreia do Sul, que são proibidas pela China.

No entanto, sete outros ativistas entrevistados pela AP disseram que Han às vezes ajudava desertores norte-coreanos a fugir para a Coreia do Sul, embora ele estivesse relutante em fazê-lo por medo de irritar as autoridades chinesas e pôr em perigo o trabalho de sua igreja. Choi Sung-Ryong, um ativista baseado em Seul, contou que abriga dez norte-coreanos na Coreia do Sul a pedido de um dos diáconos de Han.

Quando uma de suas convertidas se voluntariou para retornar à Coreia do Norte para compartilhar o "amor de Deus" com seus compatriotas em 2011, a mulher disse que Han sorriu para ela, e lhe pediu para memorizar o maior número de versículos bíblicos possíveis e lhe deu dinheiro para comprar uma casa no Norte que ela poderia usar como um local de encontro para os cristãos que agiam secretamente.

"Ele me disse que a casa seria uma igreja ou um lugar para Deus", disse a mulher norte-coreana, que, desde então, desertou para a Coreia do Sul e falou sob condição de anonimato por causa de preocupações com a segurança de seus parentes no Norte.

Como resultado do trabalho arriscado de Han, os desertores norte-coreanos, incluindo a mulher, haviam avisado o pastor que as autoridades de Pyongyang o tinham na lista dos mais procurados do país. Han sabia que ele estava "no topo de uma lista negra do Ministério de segurança do Estado da Coreia do Norte", disse a mulher.

O reverendo John Kim, um desertor que agora é pastor em Seul, disse ter sido questionado sobre Han em 2003, quando voltou para a Coreia do Norte para tentar espalhar o Evangelho. Soldados se aproximaram dele enquanto lavava roupas em um rio. "Eles me perguntaram se eu conhecia um sujeito chamado Han Chung-ryeol", disse Kim. "Então eu lhes questionei quem ele era, e eles disseram que tinham de prendê-lo."

Quanto aos fiéis que Han deixou para trás, seus sentimentos são refletidos na mensagem em uma bandeira que foi pendurada no portão da frente de sua igreja em Changbai: "mártir e pastor, Han Chung-ryeol é o nosso orgulho!"