Salário retido e moradia precária: venezuelanos são resgatados de trabalho escravo em RR
O Ministério do Trabalho resgatou ao menos 10 venezuelanos vítimas de trabalho escravo em pouco mais de um ano em Roraima, três deles nesta semana em uma obra em Boa Vista. Entre os relatos feitos pelas vítimas estão alojamentos sem água potável, salários abaixo do mínimo, sem descanso semanal e pagamentos retidos para assegurar o retorno dos venezuelanos.
Em entrevista ao UOL, o chefe do Detrae (Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo), Maurício Krepsky Fagundes, afirma que a maior parte das denúncias envolvendo condições de trabalho análogas à escravidão ocorrem em fazendas, mas que há casos até de prestadores de serviços da prefeitura de Boa Vista.
"Muitos [venezuelanos] desconhecem o que é a própria condição, que aquilo não é permitido. Um dos que foi resgatado nesta semana não sabia que não poderia ficar morando no próprio local de trabalho, fazendo suas necessidades no mato, sem acesso a banheiro, água potável, vivendo embaixo de um barraco de lona e preparando sua comida ali", diz Fagundes, que acompanhou os trabalhos em Roraima nesta semana. "Pela condição de miséria do trabalhador, ele acaba achando que aquilo é normal, e não é", diz.
Entre os relatos recolhidos em dois casos anteriores, em que sete venezuelanos foram resgatados em março de 2017 e fevereiro de 2018, estão detalhes dos abusos sofridos.
Os quatro resgatados na empresa prestadora de serviços da prefeitura trabalhavam das 8h às 20h --quando não ultrapassavam este período, carregando e descarregando estruturas metálicas de palcos e tendas, com peças pesando mais de 50 kg, e recebiam por semana valores entre R$ 100 e R$ 150, sem descanso semanal.
Além disso, seis pessoas viviam em um cômodo de 25 m², com um fogão instalado ao lado do banheiro sem porta, dormindo em redes ou colchões no chão e em meio a materiais de construção. O cômodo ficava a menos de 300 metros da sede do empregador. Além dos quatro venezuelanos, dois cubanos também foram resgatados nesta empresa em março do ano passado.
Os três venezuelanos resgatados em fevereiro de 2018 em uma fazenda de Bonfim, nos arredores de Boa Vista, tinham os pagamentos retidos pelo empregador. O homem que os empregava somente pagava parte dos salários quando os venezuelanos voltavam ao seu país para levar dinheiro e alimentos para os parentes que ficaram do outro lado da fronteira --o pagamento do restante do salário era prometido para quando eles retornassem da Venezuela.
Os três --dois homens e uma mulher-- ganhavam R$ 50 por dia, dos quais eram descontados alimentação e energia elétrica. Segundo o relato do resgate, um deles chegou a pedir para deixar o trabalho e receber os valores devidos, mas o empregador negava e dizia que havia mais trabalho a ser feito. O caso só foi descoberto porque o empregador foi preso por homicídio. No momento da prisão, policiais constataram a restrição de liberdade e, com os relatos dos venezuelanos, informaram agentes do Ministério do Trabalho, que efetuaram o resgate.
Mauricio Fagundes, chefe do Detrae, conta que a grande dificuldade para identificar os casos é justamente a falta de consistência das denúncias por falta de informação. "Às vezes, o venezuelano foi submetido a uma condição degradante, maltratado, já recebemos denúncia até de agressão física. Mas os venezuelanos não sabem exatamente onde fica a fazenda ou o local em que trabalharam", afirma.
"Nos casos de Roraima, que sabemos que existe o aumento da imigração e a questão da vulnerabilidade, planejamos uma operação com base nestas denúncias e montamos uma estratégia para fiscalizar", relata Fagundes. Segundo ele, de quatro estabelecimentos fiscalizados nesta semana, em dois foram constatados trabalho escravo, resgatando ao menos três venezuelanos e um brasileiro que trabalhavam em uma obra.
A operação desta semana foi acompanhada ainda por professores de espanhol, para traduzir os relatos e também assegurar a validade dos documentos, assinados pelos trabalhadores.
Denúncias sem informações
Entre os venezuelanos que migraram para o Brasil e vivem em Boa Vista, é rotina ouvir relatos de calote dos empregadores e até mesmo de aliciadores que buscam pessoas para trabalhar em troca de moradia e alimentação --que configura trabalho análogo à escravidão. A grande dificuldade das autoridades é justamente em receber as denúncias de ilegalidades, já que muitos venezuelanos não têm conhecimentos das leis ou temem pela própria segurança.
"Quando uma empresa está interessada em mão de obra estrangeira e consegue, por meio de aliciadores, trabalhadores para levar para outros Estados do país. Este imigrante já está devendo o transporte e fica comprometido, endividado, com o propósito de ser retido no local de trabalho", explica a procuradora do MPT-RR, Priscila Moreto.
Trabalho doméstico e exploração sexual
Entre os relatos colhidos pelo MPT, por exemplo, está um caso de trabalho doméstico em que houve exploração sexual. A vítima não foi identificada e, por isso, as investigações não puderam seguir adiante. "A pessoa tinha sido contratada para trabalho doméstico e, nesse âmbito domiciliar, teve a exploração sexual sem o consentimento. Isso é uma situação de extrema vulnerabilidade, já que a pessoa tem o receio de fazer a denúncia", diz a procuradora.
De acordo com o defensor público federal Leonardo Magalhães, já foram identificadas também rotas de tráfico de pessoas, que são principalmente ligadas à exploração sexual. "A pessoa não consegue entrar no Brasil e, ao mesmo tempo, não quer voltar para a Venezuela. Então ela acaba usando a rota pela mata, já que os dois países dividem uma fronteira seca, e os atravessadores conhecem bem a região". afirma.
As denúncias podem ser feitas tanto pelo site do MPT como diretamente com o Grupo Especial de Fiscalização Móvel criado para acompanhar a situação em Roraima, --é preciso identificar tanto o fato quanto a vítima, para que as investigações possam ser realizadas. O denunciante pode pedir anonimato.
Adoções ilegais e xenofobia
A DPU tem atuado ainda nos casos de crianças venezuelanas desacompanhadas ou sem identificação em Roraima --a maior parte, adolescentes.
"A gente atua na verificação destas crianças justamente para evitar adoções ilegais, em ações em que o adulto se identifica como o pai ou mãe e não apresenta os documentos do menor. Estas crianças são encaminhadas para o conselho tutelar, que acompanha os casos", diz Magalhães. Segundo ele, o número de crianças e adolescentes nestas condições ainda é pequeno, mas já representam preocupação para a DPU.
A procuradora Priscila Moreto, do MPT, lembra ainda que o órgão também acompanha as denúncias de trabalho infantil, principalmente de mendicância --nos semáforos de Boa Vista são vistas muitas crianças. "Na maioria dos casos estas crianças são colocadas pelos pais nesta situação por uma questão de necessidade mesmo. É preciso fazer o acompanhamento com conselho tutelar, encaminhar a família para o Cras (Centro de Referência de Assistência Social), para órgãos com experiência na temática do trabalho infantil e de acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade", diz a procuradora.
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