Rodeados de fezes e lixo, venezuelanos "garimpam" rio de esgoto: "Nunca saímos sem nada"
Ramón* nem bem coloca a cabeça para fora do rio Guaire e já mergulha de novo. A cada vez que sai das águas escuras do maior esgoto de Caracas, capital da Venezuela, o rapaz de 27 anos volta à superfície com um punhado de terra nas mãos.
Tateia com os dedos procurando qualquer joia de ouro ou prata que possa ter caído pelo ralo da casa de algum desafortunado. Joga em um balde plástico o que encontra de valor para lavar e analisar com calma mais tarde.
Em poucos segundos, enfia a cabeça na água. Sobe de novo. E repete o processo por mais uma, duas, três vezes.
Como milhares de outros caraquenhos, Ramón é um garimpeiro do esgoto. Tenta encontrar qualquer coisa que possa ser revendida e transformada em dinheiro. É o que talvez garanta o sustento de sua mulher e do filho de quatro anos.
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Vestindo apenas galochas e shorts, passa o dia na água rodeado de lixo, fezes e outros dejetos que boiam ao seu redor, levados até ali pelos canos de esgoto das quase 600 mil casas da capital venezuelana que deságuam no rio.
A sujeira e o forte odor já não o incomodam mais. A cada dia, tem se acostumado com realidade para conseguir comprar comida.
O garimpo ilegal acontece há décadas nas águas do rio que corta a cidade de ponta a ponta.
Não é uma vida boa, mas ganhamos bem aqui
Juan*, venezuelano que vive de "garimpar" esgoto
Antes da crise econômica que assola o país, eram tachados de "malucos" pela maioria da população. Poucos se submetiam às condições insalubres do rio Guaire.
Isso mudou em 2015. Para cada vez mais pessoas, vasculhar o esgoto para sobreviver parece uma ideia mais interessante do que enfrentar a fome.
Ramón, por exemplo, jamais havia cogitado a possibilidade de enfiar a cabeça no rio Guaire. Mas suas certezas se tornaram menos sólidas quando percebeu que o salário de torneiro mecânico não era mais suficiente.
"Há um ano, fiquei um tempo desempregado e não consegui arrumar mais nada. Em junho, alguns amigos me contaram sobre o garimpo e resolvi tentar. Tenho que sustentar o meu filho de algum jeito", conta.
Enfrentar as condições miseráveis do garimpo no rio Guaire rende proporcionalmente 15 vezes mais do que o salário mínimo que ganhava, explica Ramón.
Quando deixou o emprego, recebia 3 milhões de bolívares. Atualmente, com o corte de cinco zeros da moeda, o valor do salário mínimo foi para 1.800 bolívares soberanos.
Mesmo com o aumento, a inflação de 32.714% no país torna a renda insuficiente para comprar mantimentos básicos.
No garimpo, o grama do ouro vale 78 milhões de bolívares (pagos por transferência bancária) ou 16 milhões de bolívares (pagamento em espécie).
"Eles nos chamam de loucos, mas é a alternativa que temos. Sei que não é uma vida boa, mas ganhamos bem aqui. Em um bom dia, podemos conseguir até 20 gramas de material. Em um mau dia, conseguimos uns cinco gramas, mas nunca saímos sem nada", afirma Juan*, 21, amigo de Ramón e que está no garimpo há três anos.
Não entreguei o ouro, não. Meti na boca e não deixei [os policiais] levarem
Juan*, venezuelano que vive de "garimpar" esgoto
Em 72 km de extensão, diversos garimpeiros ficam em pequenos grupos de quatro pessoas. Chegam por volta das 9h e vão embora às 17h, como numa jornada normal de trabalho.
Conforme as horas passam, vai ficando mais difícil. O sol queima as costas desnudas e intensifica o mau cheiro do esgoto, mas o calor não é forte o bastante para aquecer a água gelada.
Tudo o que encontram é revendido em casas de compra de ouro no Capitólio e repartido igualmente entre os quatro companheiros.
Perto da casa de Ramón e Juan, em Charallave, cidade próxima a Caracas (a 56 km da capital), as águas antes não recebiam quase ninguém e agora veem 180 garimpeiros por dia.
Os desesperados têm aumentado. A concorrência fez com que o grupo mudasse de lugar. Atualmente os quatro amigos viajam por duas horas de ônibus e trem para percorrer os 59 km até Plaza Venezuela, no noroeste de Caracas, para trabalhar.
"Não somos inimigos e nem ficamos disputando, tem muito garimpo para ser feito aqui e dá para todo mundo, mas preferimos vir mais longe e ficar só a gente", explica Juan.
Juan vê o rio Guaire como uma oportunidade. Com os três anos de trabalho duro, conseguiu juntar dinheiro suficiente para ir com a família tentar a vida na Colômbia, para onde espera se mudar ainda neste mês.
Injeção, antibiótico e água oxigenada. A gente se cuida. Tomei vacina antitetânica. Quando chego em casa, tomo comprimido de antibiótico, passo álcool, água oxigenada e pronto
Ramón*, venezuelano que vive do que encontra no rio Guaire
Álcool e antibióticos
A única proteção que os garimpeiros utilizam são galochas nos pés. De resto, o hábito é "chegar em casa, tomar antibiótico, passar álcool no corpo e pronto", conta Ramón. Ainda assim, o grupo afirma nunca ter pegado doenças.
Eles trabalham oito horas por dia e ficam expostos a diversos riscos, como infecções de pele, leptospirose, cólera, hepatite A, parasitas intestinais e dermatites, de acordo com o Observatório Venezuelano de Saúde.
Mas o rio Guaire não é só destino de lixo e esgoto. Em meados de julho, o cadáver de um homem por volta dos 40 anos foi desovado lá. Os jornais locais afirmaram ser um homicídio.
Não surpreenderia, no entanto, se o corpo fosse de um garimpeiro. A mesma correnteza que leva o ouro às mãos dos garimpeiros faz vítimas todos os anos. "Toda vez morre alguém aí. Não sei como ainda tem gente com a ideia de entrar nesse rio", disse um morador da região que assistia aos Bombeiros retirando o morto.
A polícia bolivariana é outra ameaça. Por ser ilegal, os guardas tentam evitar a prática recorrente prendendo quem se aventura nas águas e apreendendo o material encontrado.
"Eles chegam aqui querendo conseguir o que nos esforçamos para achar. Dizem que estão seguindo a lei, mas não é isso. Só querem pegar o ouro que conseguimos", diz Juan.
"Eles me levaram preso uma vez e tive que responder processo, mas não entreguei o ouro, não. Meti na boca e não deixei levarem."
Nenhum desses riscos contém os garimpeiros.
Exausto após o longo dia de trabalho, Ramón volta para casa sabendo que vai alimentar o filho. Isso o anima a, no dia seguinte, mergulhar horas na podridão do maior esgoto da cidade.
* Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados para preservar suas identidades.
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