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Inspirado em provas de fora, Brasil tem teste de português para estrangeiros: como é e quem faz

Maha Mamo (dir.) e sua irmã, Souad Mamo (esq.) foram as primeiras pessoas a serem reconhecidas como apátridas no Brasil. Agora, querem se naturalizar como brasileiras e, para isso, só lhes falta o Celpe-Bras - Victoria Hugueney / ACNUR
Maha Mamo (dir.) e sua irmã, Souad Mamo (esq.) foram as primeiras pessoas a serem reconhecidas como apátridas no Brasil. Agora, querem se naturalizar como brasileiras e, para isso, só lhes falta o Celpe-Bras Imagem: Victoria Hugueney / ACNUR

Pedro Graminha

Do UOL, em São Paulo

12/09/2018 04h00

Maha Mamo, de 30 anos, é refugiada apátrida no Brasil há quatro anos. O RNE (Registro Nacional para Estrangeiros) foi o primeiro documento que teve em sua vida. Agora, ela tenta realizar o sonho de ter uma pátria - no caso, a brasileira. Mas, para isso, precisa ser aprovada em um teste de proficiência de língua portuguesa, o Celpe-Bras (Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros).

Mesmo falando quatro idiomas além do português --árabe, inglês, francês e armênio, Maha diz que a prova não é tão simples para ela (ou qualquer estrangeiro). O teste é semelhante às provas de proficiência em idiomas já conhecidas pelos brasileiros, como o Toefl para o idioma inglês; o Dele, para espanhol, e o Delf, para o francês.

Nascidos no Líbano, Maha e seus irmãos são apátridas porque, no Líbano, para ter cidadania é preciso ter pais libaneses; e os de Mamo são sírios -- o pai é cristão, e a mãe, muçulmana. Eles fugiram para o Líbano para se casar, uma vez que a terra natal proíbe o casamento entre pessoas de religiões diferentes. 

"Imagina que, nesse mundo todo, há pessoas que vivem assim: são como sombras, como se não existissem e só passassem nessa vida", desabafa.

Agora, prestes a ganhar uma cidadania, Maha se prepara para provar que já domina a língua do país que a acolheu. Ela conta que aprendeu português aqui no Brasil com amigos.

"A língua foi muito difícil porque era totalmente desconhecida. Nos primeiros dias, eu não sabia falar 'oi' nem nada", disse em entrevista ao UOL. "Depois, no dia a dia, acabei aprendendo muita coisa", diz Mamo. Mas depois que descobriu o Celpe-Bras, ela viu que estava bem longe do nível da prova.

Como é a prova

O teste é muito procurado por imigrantes e refugiados que vêm ao país e desejam trabalhar, revalidando seus diplomas. De acordo com dados do Conare (Comitê Nacional para Refugiados), havia 10.145 refugiados cadastrados no país no fim de 2017 --39% eram sírios, excluindo as solicitações de venezuelanos e haitianos. Para efeito de comparação, a Polícia Federal afirma que, entre 2015 e agosto de 2018, 46.761 venezuelanos solicitaram refúgio.

A prova é aplicada todo ano, duas vezes por ano, e é constituída por duas partes, uma escrita e outra oral. A primeira delas é uma prova formada por "tarefas": o participante recebe o material para análise –seja um vídeo, um áudio ou um texto– e, a partir disso, deve produzir uma redação. A segunda é uma conversa com o examinador, também com base em um material apresentado.

As notas do exame variam de 0 a 5 e, para alcançar a classificação na prova, deve-se conseguir a pontuação referente ao nível intermediário nos exames escrito e oral (nota 2 para cima). Do contrário, o candidato é reprovado.

O Celpe-Bras foi aplicado pela primeira vez em 1998 e, desde 2009, a prova ficou sob a responsabilidade do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a mesma organização responsável pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Podem prestar todos os estrangeiros cuja língua materna não seja o português.

Para prestar, o interessado deve escolher um dos postos aplicadores. No Brasil, são 27 locais de prova, e há outros 55 no exterior. O valor do teste é definido pelo centro aplicador e, segundo o Inep, no Brasil este valor pode chegar a R$ 200; no exterior, o valor máximo é de US$ 100 (cerca de R$ 415).

Procurado pelo UOL, o Inep não informou o número de pessoas que costuma prestar a prova, suas nacionalidades ou o número de aprovados.

Há vários usos possíveis para o exame. Algumas universidades do país exigem a proficiência do idioma como critério de admissão para alguns níveis de estudo. Estrangeiros que vêm ao país através da parceria desenvolvida pelo Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) -- que oferece oportunidades de estudo para alunos de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais--, precisam obrigatoriamente provar a proficiência do português antes de começar seus estudos.

Outra estrangeira que pretende tirar a proficiência em português é Rachel*, médica cubana que mora e trabalha no Brasil desde 2014. Ela veio ao país como parte do programa Mais Médicos, do governo federal, e diz ter começado a estudar o português para melhorar a comunicação com seus pacientes, algo que considera fundamental em sua profissão. "É importante estudar o português porque a gente aprende parte da gramática, a escrever melhor, a falar, os usos formais e informais da língua. Para quem é estrangeiro, o Celpe-Bras acaba sendo uma via para nos prepararmos da melhor forma possível", explica a médica.

Portunhol não garante aprovação

Para Ricardo Filgueira, professor de português para estrangeiros, a prova tem um nível alto por usar materiais reais, do cotidiano, como vídeos, reportagens impressas e programas de rádio, por exemplo. Para ele, pessoas cuja língua materna é o espanhol, o teste pode parecer fácil, mas não é bem assim. "Ele acha que, por assistir muita novela brasileira e conviver com as pessoas no Brasil e entender muita coisa do que é falado, pela proximidade das línguas, já está pronto para fazer a prova. Mas é aí que se engana, porque ele só tem o domínio da compreensão auditiva. Entende muita coisa e, na hora de falar e escrever, mistura muito, não fala português, fala portunhol", diz o professor.

Formado em Letras, Ricardo começou a dar aula de português para estrangeiros quando passou um tempo na Suíça. De volta ao Brasil, ensinou português para imigrantes –sobretudo haitianos e bolivianos em uma ONG. Foi assim que descobriu o Celpe-Bras e passou a dar aulas para quem precisa se preparar para o exame.

Emília Mena, 35 anos, estudante norte-americana, é uma das alunas de Ricardo que se prepara para o Celpe-Bras. Ela conta que irá prestar o exame para aprofundar seus conhecimentos na língua. "Sempre quis aprender o português, e tanto era a minha vontade que me lembro de assistir o 'Xou da Xuxa', tentando aprender a língua sozinha. Depois, já adulta, fiquei apaixonada pela cultura brasileira e, quando tive a oportunidade para finalmente fazê-lo, me dediquei a aprender a língua bem", diz a estudante, que está no Brasil há quase um ano.

Hoje ela mora no Rio de Janeiro, onde também seguiu seus estudos de português em uma escola de idiomas. Quando perguntada sobre como ia a preparação para o exame, Emília conta que o mais difícil são as conjugações e as muitas regras e exceções. Mas, mostrando que já sabe usar até mesmo algumas gírias brasileiras, disse que os estudos estavam "rolando".

Uma pátria pela língua

No Brasil, a nova lei de Migração estipulou, pela primeira vez, um estatuto sobre a questão dos apátridas, reconhecendo e determinando a facilitação dos processos de naturalização para as pessoas que se encontram nessa situação. Maha e sua irmã Souad tiverem um papel importante na mudança dessa lei no país, pois foram as primeiras pessoas a serem reconhecidas como apátridas pelo governo brasileiro.

Entre os requisitos para fazer pedir a cidadania brasileira estão morar pelo menos dois anos no Brasil, não ter antecedentes criminais e provar que sabe falar português. Para isso, é preciso ser aprovado no Celpe-Bras.

Maha diz estar se preparando bastante para o exame, buscando ter um contato maior com a língua em livros, filmes e jornais. "Mesmo falando português, tenho dificuldade com a parte escrita por causa dos acentos, dos verbos e dos vocabulários", diz a apátrida. Maha e a irmã, Souad, farão a prova em outubro.

Quando chegou ao Brasil, ela encontrou uma família de Belo Horizonte que aceitou acolher Maha e seus irmãos. Mesmo sem conhecer uma palavra de português, essa era a melhor chance de conseguirem uma nacionalidade. Eddy, seu irmão mais novo, morreu em 2016 em um assalto --sem falar português direito, não entendeu o que os assaltantes queriam.

"Um apátrida, quando nasce, não tem certidão de nascimento e, quando ele morre, não tem certidão de óbito. Meu irmão teve a certidão de óbito só porque foi reconhecido como refugiado no Brasil", diz Maha. "Até hoje, com muito orgulho eu falo do Brasil, foi o país que me acolheu, o lugar onde eu existi. É muito difícil entender isso quando se tem tudo como garantido, e os apátridas não. O Brasil deu a vida para meu irmão", afirma.

Hoje, Maha participa de missões da ONU em diversos países, onde busca sensibilizar governos para a questão dos apátridas. Assim que for aprovada no Celpe-Bras, ela dará entrada nos papéis para concluir seu processo de cidadania e tornar-se brasileira.