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Fim da espera: primeira apátrida reconhecida no Brasil é naturalizada em cerimônia da ONU

Maha Mamo recebeu a nacionalidade brasileira em cerimônia na ONU em Genebra - Susan Hopper/ACNUR
Maha Mamo recebeu a nacionalidade brasileira em cerimônia na ONU em Genebra Imagem: Susan Hopper/ACNUR

Do UOL, em São Paulo*

05/10/2018 14h48

"Eu não sei se estou sonhando ou se isso está realmente acontecendo. É o sonho de uma vida inteira se tornando realidade", disse a ativista Maha Mamo antes de receber a cidadania brasileira em uma cerimônia surpresa em Genebra.

Até hoje, Maha estava entre as milhões de pessoas que não possuem nacionalidade pelo mundo, os apátridas.

Sem acesso a direitos básicos, os apátridas são relegados a viver uma vida inteira de exclusões. "Imagina nesse mundo todo, as pessoas que vivem assim: elas são iguais sombras, como se não existissem e só passassem nessa vida", explicou Maha Mamo em uma entrevista dada ao UOL, em setembro.

Com 30 anos de idade, Maha nasceu no Líbano em 1988, filhas de pais sírios. No entanto, devido a restrições legais tanto na Síria quanto no Líbano, não pode ser registrada em nenhum dos dois países, nunca tendo documentos e uma cidadania. 

Ela deveria ter sido reconhecida como uma cidadã síria uma vez que seu pai – que é cristão – é sírio. Mas pelo fato de sua mãe ser muçulmana, não foi possível registrar o casamento dos pais e o seu nascimento, impedindo-a de obter a cidadania síria.

Maha também não foi considerada libanesa, pois a lei do país não permite adquirir nacionalidade somente por ter nascido no território em questão, e naturalizações são extremamente raras.

Ela descreveu como a apatridia impactou cada aspecto de sua vida, começando com seus dias de escola, quando o acesso à educação era concedido apenas como um favor. Ser capaz de obter tratamento médico, passar por postos de controle policiais, procurar por oportunidades de trabalho ou até comprar um chip para celular estavam entre suas batalhas diárias.

“Tudo que as pessoas consideram normal, eu tive que lutar para obter”, ela disse. “Educação, trabalho, saúde e viagens. Minha vida ainda estava em perigo, eu poderia ir para a cadeia a qualquer momento.”

Portanto, desde que passou a ter consciência de sua situação, Maha buscou formas de tentar ser aceita por algum país. Ela conta que até chegou a escrever uma carta para o presidente do Líbano e várias embaixadas, mas obteve respostas negativas todas as vezes.

Sua busca por pertencer – compartilhada com seus dois irmãos, Souad  e Eddy – finalmente ganhou força cinco anos atrás quando consulados brasileiros no Oriente Médio começaram a emitir vistos especiais para sírios, em procedimentos simplificados, a fim de permitir que sobreviventes da guerra civil do país viajassem para o maior país da América Latina, onde eles poderiam apresentar um pedido de refúgio. “O único país que me aceitou como um ser humano foi o Brasil. Não porque eu era apátrida, mas porque eles abriram as portas para os refugiados sírios por conta da guerra”, disse ela.

Maha partiu para uma nova vida em São Paulo em setembro de 2014, adquirindo o status de refugiada em maio de 2016, com a ajuda do ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados.

No ano passado, a expectativa de ganhar uma cidadania finalmente se tornou realidade quando o Brasil aprovou sua Nova Lei de Imigração. Com a aprovação da lei, pela primeira vez o Brasil possui um Procedimento de Determinação da Apatridia. Como primeiro passo para conquistar a cidadania, Maha foi formalmente reconhecida como apátrida. Na etapa final, ela fez um exame de proficiência em português no dia 1º de outubro.

A embaixadora e representante permanente do Brasil junto às Nações Unidas em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevêdo, e o coordenador-geral do Comitê Nacional para Refugiados, Bernardo Laferté, entregaram conjuntamente a cidadania a Maha. Ambos a cumprimentaram pela conquista e a embaixadora limpou as lágrimas dos seus olhos, depois de abraçá-la.

“Momentos como esse dão significado para o trabalho que fazemos todos os dias”, ela disse para Maha. “Nós estamos aqui todos os dias lendo artigos e falando sobre situações sem vivenciá-las. E este momento me fez viver um pouco sua situação, então muito obrigada.”

Laferté, cujo avô também era apátrida, enfatizou que a concessão da nacionalidade é uma consequência direta da nova lei de imigração no Brasil. “Isso confirma a tradição do Brasil de proteger estrangeiros e seu comprometimento de erradicar a apatridia”, acrescentou.

Agradecendo ao ACNUR e seu país de origem, o Brasil, ela olha para o futuro e para o trabalho que deve ser feito para ajudar os milhões de outros apátridas que continuam vivendo às margens dos direitos humanos.

“Assim como o Brasil está mudando minha vida hoje, qualquer país pode fazê-lo”, ela disse, em um apelo aos Estados-membros da ONU. “Imaginem quantas vidas vocês podem mudar.”

(*?Com Informações da ONU)