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Para produzir baterias de celular, empresas exploram a pouca água do deserto do Chile

Piscina de salmoura em mina de lítio que pertence à Albemarle, no deserto do Atacama - Ivan Alvarado/Reuters
Piscina de salmoura em mina de lítio que pertence à Albemarle, no deserto do Atacama Imagem: Ivan Alvarado/Reuters

Dave Sherwood

Da Reuters, em San Pedro de Atacama (Chile)

04/11/2018 04h01

No início deste ano, os dois maiores produtores de lítio do mundo celebraram novos acordos com o governo do Chile que permitirão que aumentar consideravelmente a produção no Atacama, o deserto mais seco do mundo, do metal usado na bateria ultraleve.

A Albemarle Corp, sediada nos EUA, e a SQM, do Chile, operam a apenas 5 quilômetros de distância, no remoto Salar, uma bacia no Atacama que abriga um dos mais ricos depósitos de lítio de alta qualidade do mundo. As baterias de íons de lítio são essenciais para a maioria dos eletrônicos, desde telefones celulares e laptops até carros elétricos.

Ao celebrar os novos contratos, as duas empresas disseram estar confiantes de que poderiam aumentar significativamente a produção sem extrair mais do que suas cotas atuais de salmoura rica em lítio, ou água salgada, que há milênios se acumulam em piscinas sob o Atacama. As empresas disseram que cada uma delas possuía toda a salmoura necessária para a produção atual e futura.

"Não vejo qualquer problema em nossa capacidade de obter (a salmoura) ... hoje, amanhã e durante todo o prazo desse acordo”, que termina em 2043, informou o CEO da Albemarle, Luke Kissam, a investidores em agosto.

Mas uma análise da Reuters sobre documentos apresentados à agência reguladora ambiental do Chile mostra que a Albemarle tem uma opinião diferente, expressando preocupação sobre quanta salmoura a rival SQM vinha extraindo e o impacto que isso poderia ter na produção futura da área.

A verdadeira situação do abastecimento de água do Salar, tanto de água doce quanto salgada, se tornou obsessão dos observadores da indústria de lítio devido à enorme importância da área em satisfazer a crescente demanda global pelo metal branco pulverulento. A área é o lugar mais rentável do mundo para extrair o metal, e tanto a SQM quanto a Albemarle apostaram grande parte de sua produção futura no Salar.

Turista visita o Vale da Lua, perto de San Pedro de Atacama, no Chile - Ivan Alvarado/Reuters - Ivan Alvarado/Reuters
Turista visita o Vale da Lua, perto de San Pedro de Atacama, no Chile
Imagem: Ivan Alvarado/Reuters

Nos documentos que não foram apresentados anteriormente, a Albemarle manifesta preocupação com uma investigação de 2016 feita pelas autoridades chilenas que descobriu, durante vários anos, que a SQM extraiu mais salmoura rica em lítio localizada sob o Salar do que o permitido.

Em um documento de março de 2017, por exemplo, a Albemarle afirmou que era importante para as autoridades determinarem o quanto a SQM havia retirado, já que isso poderia afetar a disponibilidade de salmoura para outros projetos.

Esse pedido ocorreu um mês depois que Eduardo Bitran, que na época era chefe da agência de desenvolvimento estatal do Chile, Corfo, levantou preocupações semelhantes sobre a quantidade de salmoura que a SQM vinha extraindo e outras infrações. Em uma carta ao órgão regulador ambiental, Bitran escreveu que as ações da SQM representam um "risco severo" para o ecossistema do Salar e suas reservas de salmoura.

O regulador ambiental do Chile disse que a SQM fez mudanças na maneira como monitora os poços sem autorização, dificultando o rastreamento do impacto do bombeamento nos suprimentos de água salgada da empresa.

A SQM não confirmou se extraiu salmoura em excesso. No entanto, em quase dois anos, a empresa apresentou quatro planos com reguladores para adequar suas operações às aprovações ambientais, que, entre outras coisas, especificam o quanto de salmoura a empresa pode bombear. Os três primeiros planos foram devolvidos à SQM pelos reguladores para novas revisões; o mais recente, arquivado em setembro, ainda não recebeu uma resposta.

Enquanto isso, a SQM acusou a Albemarle de extrair salmoura de sua mina e questionou se as ações de seu concorrente poderiam ter repercussões sobre a disponibilidade de reservas de salmoura no Salar. A Albemarle não quis comentar quando perguntada pela Reuters se a denúncia estava correta.

Hidrogeólogos e químicos ambientais consultados pela Reuters sobre os documentos disseram que as acusações entre as mineradoras ressaltam as preocupações generalizadas sobre quanta salmoura ainda existe e quanto tempo esse estoque vai durar. Eles afirmaram que os documentos mostram que nem as autoridades chilenas, nem as empresas têm uma imagem clara da situação da água no momento em que as mineradoras receberam luz verde para aumentar a produção.

O analista de lítio Joe Lowry disse que os registros têm implicações potenciais para a produção global do metal, que se tornou uma das commodities mais populares do mundo.

"O mundo do lítio está em estado de apreensão", disse ele. Quando se trata do Salar, "o que a SQM vai ser capaz de fazer ou o que a Albemarle será capaz de fazer em termos de produção?"

Trabalhadores preparam-se para instalar um sistema de medição de umidade no meio do salar de Atacama - Ivan Alvarado/Reuters - Ivan Alvarado/Reuters
Trabalhadores preparam-se para instalar um sistema de medição de umidade no meio do salar de Atacama
Imagem: Ivan Alvarado/Reuters

Em uma recente entrevista à Reuters, Kissam, CEO da Albemarle, insistiu que não havia “dúvida” de que havia água suficiente no Salar para manter as operações de lítio. A empresa pode produzir 80 mil toneladas métricas de lítio por ano no Salar --aproximadamente 36% da demanda global em 2017-- ajudada pela tecnologia desenvolvida que permitirá extrair mais lítio da mesma quantidade de salmoura, disse ele.

Ele se recusou a falar das preocupações expressas por sua empresa nos documentos regulatórios sobre o suprimento de água da região. Em um desses documentos, a Albemarle disse que o plano de compliance de sua rival não conseguiu abordar suficientemente as preocupações dos reguladores e "levanta dúvidas ... sobre a sustentabilidade no tempo das operações de ambas as companhias".

Kissam também disse que sua empresa está usando atualmente apenas a quantidade de água permitida pelos reguladores. “Não estamos exagerando. Estamos bombeando em taxas bem dentro de nossas autorizações”, disse ele.

Por sua parte, a SQM, controlada por Julio Ponce Lerou, um bilionário chileno recluso, diz que já tem toda a salmoura necessária para produzir mais lítio.

A SQM se recusou a comentar sua luta pela água com a Albemarle. A empresa afirmou em comunicado à Reuters que suas declarações ao órgão regulador falam por si mesmas. Mas, acrescentou: "Nossas conclusões indicam que nem a sustentabilidade ambiental nem a produtividade do Salar de Atacama estão comprometidas".

Para Mariana Cervetto, uma geógrafa que revisou os aspectos técnicos do caso para a Corfo, a agência estadual de desenvolvimento e as comunidades indígenas locais que circundam o Salar de Atacama, as dúvidas ainda superam as respostas.

"Quando as pessoas me perguntam: 'A água está acabando?' Eu digo a elas: 'A verdade é que não sabemos'", disse Cervetto.

A briga entre a Albemarle e a SQM existe, pelo menos, desde 2013, quando os inspetores do governo visitaram as instalações do SQM e encontraram algo errado.

As árvores nativas de Algarrobo --madeiras resistentes do deserto que sobrevivem mandando brotos para dentro de aquíferos subterrâneos-- estavam desfolhando e morrendo.

Moradores locais dançam durante feriado religioso na região de Peine, no deserto do Atacama, no Chile - Ivan Alvarado/Reuters - Ivan Alvarado/Reuters
Moradores locais dançam durante feriado religioso na região de Peine, no deserto do Atacama, no Chile
Imagem: Ivan Alvarado/Reuters

As 23 árvores mortas representam um terço daquelas que a SQM se comprometeu a monitorar. Como canários em uma mina de carvão, a saúde das árvores deveria servir como um sinal de aviso antecipado dos problemas da água. Dois anos depois, mais árvores estavam morrendo, mas a SQM não notificou as autoridades, segundo relatórios de inspeção do governo analisados pela Reuters.

"Se a SQM estiver extraindo mais salmoura do que é permitido no Salar, isso pode ter repercussões na disponibilidade de reservas na bacia para outros projetos", escreveram os advogados da subsidiária da Albemarle, Rockwood Lithium Ltd, no documento de março de 2017.

A SQM retrucou no mês seguinte. A empresa escreveu ao regulador dizendo que era "ultrajante" que a Albemarle estivesse se apresentando como uma defensora do meio ambiente quando a própria companhia reconheceu a retirada excessiva de água em 2008 e entre 2010 e 2012. A Albemarle não quis comentar sobre o assunto com a Reuters.

A Corfo apresentou um novo estudo sobre a disponibilidade de água no Salar para o regulador ambiental em março, que descobriu que mais água e salmoura estavam saindo do sistema por meio de bombeamento e evaporação do que chegando via chuva e neve.

No documento, a Corfo disse, no entanto, que o estudo não conseguiu identificar qual das mineradoras de cobre ou lítio que operam no Salar era culpada pelo desequilíbrio. A agência afirmou que essa incerteza era motivo suficiente para os reguladores tomarem medidas para restringir a extração.

Esse processo está agora em andamento. A Reuters informou em agosto que o regulador de água do Chile estava preparando restrições aos novos direitos de uso de água no Salar em parte por causa da incerteza sobre quanta extração ainda pode suportar.