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Reação lenta do papa Francisco em relação a abusos ameaça seu legado

Papa Francisco durante o discurso de Natal no Vaticano - Reprodução/Instagram/franciscus
Papa Francisco durante o discurso de Natal no Vaticano Imagem: Reprodução/Instagram/franciscus

Nicole Winfield

Da AP, no Vaticano

01/01/2019 04h00

Foi um ano infeliz para o papa Francisco, cuja atitude lenta em relação ao abuso sexual de clérigos conspirou com eventos além de seu controle que ameaçam seu legado e lançam a hierarquia católica em uma crise de credibilidade jamais vista nos tempos modernos.

O mais recente acontecimento -- em um país distante -- cimenta a impressão de que Francisco simplesmente não "entendeu" quando se tornou papa em 2013 e começou a liderar a igreja.

Os primeiros erros incluíram a associação com cardeais e bispos comprometidos e ter subestimado ou rejeitado rumores de abuso e encobrimento. Francisco finalmente tomou uma atitude em 2018, quando admitiu publicamente que estava errado sobre um caso no Chile, fez reparos e lançou as bases para o futuro convocando uma cúpula de prevenção ao abuso no ano que vem.

Mas danos à sua autoridade moral sobre o assunto foram feitos. Antes que seus olhos se abrissem, Francisco mostrou que ele era um produto da cultura muito clerical que ele sempre denuncia, sempre pronto a aceitar a palavra do clérigo sobre as vítimas.

O ano começou bem: Francisco dedicou sua mensagem anual de paz em 1º de janeiro ao sofrimento dos migrantes e refugiados. Logo depois, ele batizou 34 bebês na Capela Sistina e encorajou suas mães a amamentar, uma típica demonstração franciscana de praticidade informal em meio ao esplendor do "Julgamento Final" de Michelangelo.

Então veio o Chile.

A visita de Francisco em janeiro foi dominada pelo escândalo de abusos clericais por lá, e contou com protestos sem precedentes contra uma visita papal: igrejas foram atacadas com bombas incendiárias e a tropa de choque usou canhões de água para reprimir manifestações.

A oposição chilena a Francisco havia começado três anos antes, quando o papa argentino nomeou Juan Barros como bispo da diocese de Osorno. Francisco havia descartado as alegações de que Barros ignorou e encobriu os abusos cometidos pelo padre predador mais proeminente do Chile, impondo-lhe uma diocese que não queria ter nada a ver com ele.

"No dia em que me trouxerem provas contra o bispo Barros, falarei", disse Francisco em seu último dia no Chile. "Não há um único tipo de prova contra ele. É tudo calúnia. Está claro?"

Francisco defendeu Barros porque um de seus amigos e conselheiros, o cardeal chileno Javier Errazuriz, defendeu Barros. Francisco, em 2013, nomeou Errazuriz para seu círculo íntimo, um gabinete formal paralelo de nove cardeais que se reúne a cada três meses no Vaticano.

As vítimas chilenas, no entanto, há muito acusavam Errazuriz de se fazer de surdo às suas reivindicações enquanto ele era arcebispo de Santiago, dando cobertura aos abusadores e seus facilitadores. Francisco desconsiderou as preocupações das vítimas e nomeou Errazuriz para o alto gabinete.

Na esteira de sua viagem desastrosa ao Chile, Francisco lentamente se aproximou das vítimas, em parte em resposta a reportagens da Associated Press. Ele ordenou uma investigação profunda na igreja chilena, admitiu "graves erros de julgamento" e pediu desculpas pessoalmente às vítimas que havia desacreditado. Ele acusou a liderança chilena de criar uma "cultura de acobertamento" e garantiu a renúncia de todos os bispos ativos ali, incluindo Barros. Ele prometeu que a Igreja Católica "nunca mais" esconderá abusos, e, no início deste mês, o Vaticano anunciou que Francisco havia demitido Errazuriz do gabinete.

Também foi removido o cardeal George Pell, que deixou o cargo de ministro da Economia do Vaticano em junho de 2017 para ser julgado por crimes históricos de abuso sexual em sua Austrália natal. Como Errazuriz, Pell tem sido alvo da ira das vítimas de abuso há anos, bem antes de Francisco levá-lo ao Vaticano, dado seu papel proeminente na Austrália e o horrível histórico da Igreja Católica com abusos por lá.

Ambos os homens negam terem feito algo de errado. Mas sua presença constante no Conselho dos Nove, como o gabinete é chamado, tornou-se uma fonte de escândalo para o papa, que se despediu deles em outubro com uma carta agradecendo-lhes pelo serviço prestado. Para Pell, a remoção do C9 sugere que ele não vai retomar o trabalho no Vaticano já que seu mandato de cinco anos expira no início do ano que vem.

Eles não são os únicos cardeais na berlinda: o atual arcebispo de Santiago está sob investigação em uma ampla investigação criminal sobre o encobrimento de abusos sexuais. Os promotores de uma dúzia de estados dos EUA estão investigando arquivos da igreja. Um julgamento de acobertamento na França tem dois cardeais como réus, incluindo o espanhol que dirige o escritório do Vaticano que processa casos de abuso sexual. A Santa Sé invocou imunidade soberana para poupar o cardeal da Espanha, Luis Ladaria Ferrer. Mas não tem tal poder para proteger o cardeal Philippe Barbarin, arcebispo de Lyon, na França, acusado de não denunciar às autoridades um padre abusivo confesso. Francisco disse que a Justiça francesa deveria seguir seu curso, mas elogiou Barbarin como "corajoso".

Apesar de tais problemas, com o escândalo do Chile em grande parte redimido e as decisões tomadas para purgar seu círculo íntimo de membros comprometidos, Francisco pareceu no meio do ano estar bem encaminhado para sair da crise dos abusos sexuais de 2018.

Em seguida, o segundo round começou.

Em julho, Francisco retirou do arcebispo dos EUA, Theodore McCarrick, o título de cardeal, depois que investigadores da igreja disseram que a alegação de que ele apalpou um coroinha adolescente na década de 1970 era crível. Posteriormente, vários ex-seminaristas e padres relataram que eles também haviam sido abusados ou assediados por McCarrick como adultos.

Um mês depois, um relatório do grande júri na Pensilvânia revelou sete décadas de abuso e acobertamento em seis dioceses, com alegações de que mais de mil crianças foram molestadas por cerca de 300 padres. A maioria dos padres já havia morrido e os crimes eram muito anteriores ao papado de Francisco.

Mas o escândalo combinado criou uma crise de confiança na hierarquia dos EUA e do Vaticano. Aparentemente, era de conhecimento comum nos Estados Unidos e na liderança do Vaticano que o "Tio Ted", como McCarrick era conhecido, dormia com seminaristas, e mesmo assim ele ainda se mantinha impassível nas fileiras da igreja.

Tendo removido McCarrick e aprovado um processo canônico contra ele, Francisco deveria ter surgido como o herói da saga já que ele corrigiu o erro de São João Paulo II, o papa de 1978-2005 que havia promovido McCarrick e cuja atuação nas questões de abuso são muito piores do que as de Francisco, devido à sua inação.

Mas a maré positiva de Francisco foi interrompida quando um ex-embaixador do Vaticano nos Estados Unidos acusou o próprio papa de participar do encobrimento de McCarrick.

Em uma denúncia de 11 páginas em agosto, o arcebispo Carlo Maria Vigano afirmou que as autoridades do Vaticano ao longo de três pontificados sabiam sobre a propensão de McCarrick para seminaristas, e fez vista grossa.

Vigano escreveu que ele havia dito a Francisco, em 2013, no início de seu pontificado, que McCarrick havia "corrompido uma geração" de seminaristas e padres e que o papa Bento 16 acabara sancionando-o por sua má conduta sexual.

Vigano alegou que Francisco desconsiderou seu alerta de 2013 e reabilitou McCarrick dessas sanções, fazendo dele um conselheiro-chave e confiando-lhe missões delicadas para a China e outros lugares.

Francisco nunca respondeu à lista de reclamações de Vigano. Em vez disso, Francisco culpou o diabo --"o Grande Acusador"-- por semear divisão e discórdia na igreja, um tapa indireto em Vigano que só alimentou o ultraje conservador contra Francisco e exige que ele diga o que sabia sobre McCarrick.

O Vaticano não ajudou Francisco a se defender quando, sem fornecer qualquer razão plausível, impediu que os bispos dos EUA adotassem medidas de responsabilidade para tentar restaurar a confiança em seus rebanhos.

Agora parece claro que Francisco, pelo menos no início de seu pontificado, estava disposto a ignorar o mau comportamento sexual do passado ou acobertar as reivindicações se os responsáveis tivessem se redimido. Francisco lançou seu pontificado com seu famoso comentário "Quem sou eu para julgar", sobre um padre gay que ele havia designado para uma posição de alto assessor apesar das alegações de que ele havia tido uma série de amantes.

Esse comentário, que lhe rendeu aplausos de católicos liberais e o colocou na capa da revista Advocate, pode agora ser sua ruína. Se ele tivesse julgado seus conselheiros mais escrupulosamente no início de seu pontificado em seus registros de abuso e encobrimento, Francisco poderia ter retido mais credibilidade em 2018.