Topo

Preso ganha liberdade nos EUA ao criar podcast 'bisbilhoteiro' na cadeia

Earlonne Woods usa um gravador digital para coproduzir seu podcast - Ben Margot/AP
Earlonne Woods usa um gravador digital para coproduzir seu podcast Imagem: Ben Margot/AP

Olga R. Rodriguez

Da AP, em Oakland (Califórnia)

06/01/2019 04h00

Na Califórnia, os detentos geralmente ganham liberdade condicional ao praticar boas ações ou mostrar que foram reabilitados ao se tornarem pastores, conselheiros de projetos antidrogas ou defensores dos jovens. Mas, para Walter "Earlonne" Woods, o caminho para a liberdade foi um podcast.

Woods, de 47 anos, foi libertado recentemente da prisão estadual de San Quentin, depois que o governador da Califórnia, Jerry Brown, transformou sua sentença de 31 anos de prisão por tentativa de assalto à mão armada. Brown citou a liderança de Woods em ajudar outros presos e seu trabalho no podcast "Ear Hustle", um programa de rádio para a internet que ele coapresenta e coproduz em que documenta a vida cotidiana dentro da prisão.

Woods está contratado como produtor em tempo integral do podcast que é engraçado e comovente. O programa tem sido um sucesso desde o seu lançamento, em 2017. Os 30 episódios da série foram baixados 20 milhões de vezes por fãs de todo o mundo.

Os ouvintes elogiaram "Ear Hustle" e disseram que o podcast é "revelador" e "incrivelmente humanizante". Mas, para Woods, um das críticas mais significativas veio do gabinete do governador quando ligaram com a boa notícia.

"Uma mulher me disse: 'Nós amamos o podcast neste escritório'", disse Woods à Associated Press sobre a ligação feita do escritório de Brown. "Eu não sei se o governador ouve, mas as pessoas em seu escritório ouvem. As pessoas realmente gostam do que fazemos."

Durante seu podcast, Woods e seu colega criador, o voluntário da prisão Nigel Poor, dão aos ouvintes a possibilidade de dar uma espiada nas dificuldades e nas pequenas alegrias dos homens encarcerados nas instalações de segurança média.

Em entrevistas com os apresentadores, os detentos discutem as dificuldades como encontrar um companheiro de cela para dividir um espaço de 1,5 m x 3 m, dizem compartilhar o gosto de criar rãs ou aranhas viúvas negras como se fossem animais de estimação ou descrevem o impacto do confinamento solitário ou de estar no corredor da morte.

Woods, um homem afável com um sorriso rápido e um senso de humor aguçado, ajuda os ouvintes a entender a vida nas prisões, enquanto Poor traz uma perspectiva de fora, fazendo perguntas perspicazes que às vezes levam os detentos a refletir sobre o que os coloca atrás das grades.

O podcast oferece aos ouvintes uma visão íntima de vidas sobre as quais a sociedade não passa muito tempo pensando, disse Woods, que passou 21 anos atrás das grades.

"As pessoas acabam vendo as perseguições de carro. Eles também assistem o julgamento. Mas eles não sabem o que acontece depois que você chega à prisão", disse Woods. "Conseguimos realmente humanizar as pessoas e todos percebem que quem está na prisão são apenas pessoas que tomaram decisões idiotas."

O governador Brown concordou, e em sua carta de comutação, emitida no dia anterior ao Dia de Ação de Graças, o político disse que Woods "mostrou claramente que ele não é mais o homem que era quando cometeu o crime".

"Ele estabeleceu um exemplo positivo para seus colegas e, por meio de seu podcast, compartilhou histórias significativas daqueles que estão dentro da prisão", escreveu Brown.

O projeto de podcast começou depois que Poor, uma artista da área da baía de São Francisco que trabalha como voluntária em San Quentin desde 2011, abordou Woods.

Em 2016, Poor viu que a rede Radiotopia da Public Radio Exchange patrocinava um concurso de talentos de podcast e pediu ao tenente Sam Robinson, porta-voz de San Quentin, permissão para se inscrever. Outro cocriador do podcast, Antwan Williams, que está cumprindo 15 anos por assalto à mão armada, entrou no projeto para fazer o design de som.

O programa bateu mais de 1.500 participantes de 53 países e recebeu o apoio de um grupo de profissionais de rádio, contou Poor.

"Todo mundo ficou chocado quando vencemos, especialmente a prisão. O tenente Robinson me disse que nos deixou entrar porque nunca pensou que venceríamos", afirmou Poor.

"Ear Hustle" --que significa bisbilhotar, na gíria da prisão-- encontrou sucesso internacional, com ouvintes mandando mensagens da Nova Zelândia, do Qatar e das Ilhas Maurício, na África Oriental. O programa gratuito também pode ser acessado em prisões em toda a Califórnia e no Reino Unido. Novos episódios são postados a cada duas semanas.

Julie Shapiro, produtora executiva da Radiotopia, descreve o podcast como uma "montanha-russa de emoções" que desafia o que as pessoas entendem sobre a vida na prisão.

"As pessoas não esperam ter algo em comum com aqueles que contam suas histórias da prisão, mas os detalhes de suas vidas ressoam com os ouvintes porque percebem que esses homens lidam com a vida cotidiana da mesma forma que nós", disse Shapiro.

A efusão de amor e apreço pelo programa cresceu desde que Woods anunciou em um episódio de 24 de novembro que Brown havia comutado sua sentença.

A primeira coisa que Woods fez depois de caminhar pelos portões da prisão em 30 de novembro foi apreciar a vista da baía de San Francisco e do oceano "até onde os olhos podem ver". Um episódio apresentou seus primeiros momentos como um homem livre.

Desde então, ele tem notado novos estilos, como mulheres em todos os lugares em calças de ioga e pessoas andando pelas ruas de cabeça baixa. Ele rapidamente percebeu que eles estavam olhando para seus smartphones, algo que não existia quando ele começou a cumprir sua sentença em 1997.

Woods também passou um tempo assistindo pessoas em uma loja de departamentos, visitou a Disneylândia e recentemente preparou ovos pela primeira vez em duas décadas.

A quarta temporada de "Ear Hustle", que será lançada na metade do ano, contará com histórias de sua reentrada na sociedade e entrevistas com outros detentos libertados após longas sentenças. Ele e Poor também planejam visitar prisões de segurança máxima e contar as histórias dos prisioneiros de lá.

"Há muitas pessoas lá que deveria estar fora", disse Woods. "Criei um podcast, mas não sou a exceção."