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"Aqui não é São Paulo", diz secretário sobre saúde precária em Roraima

Indígenas venezuelanos feridos em confronto com militares são socorridos em hospital de Boa Vista (RR) - Bruno Kelly/Reuters
Indígenas venezuelanos feridos em confronto com militares são socorridos em hospital de Boa Vista (RR) Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

09/03/2019 04h00

A superlotação e a falta de materiais hospitalares e de medicamentos nos hospitais públicos de Roraima são somente a parte visível da crise no sistema de saúde do estado que é a principal porta de entrada de refugiados venezuelanos em território brasileiro.

Relatos de profissionais de saúde de lá dão conta de que a situação é ainda mais precária do que parece: por conta da falta de estrutura, por exemplo, a remoção de pacientes entre Pacaraima, na fronteira, e Boa Vista é feita de forma improvisada nos mais de 200 km que separam as duas cidades: pacientes são entubados "a seco", sem qualquer sedativo, ataduras são amarradas e falta soro fisiológico.

Quando a fronteira está aberta --por enquanto continua fechada por ordem do ditador Nicolás Maduro--, entram por Pacaraima em média 800 venezuelanos por dia. A emergência do pequeno hospital só dá conta de fazer o básico de estabilização. É um atendimento de "contenção de danos", de acordo com os profissionais do sistema público de saúde de Roraima ouvidos pela reportagem.

"Se chega um baleado, por exemplo, como aconteceu com os indígenas venezuelanos feridos do outro lado da fronteira e atendidos no Brasil, dependendo do ferimento, ele não vai ter condições de chegar vivo até Boa Vista. Em Pacaraima, só dá para fazer um atendimento básico, uma hidratação, uma sutura", relata ao UOL João*, médico que trabalha no sistema público de saúde e falou sob anonimato.

Em Pacaraima, só dá para fazer um atendimento básico, uma hidratação, uma sutura
João*, médico, sob anonimato

O transporte dos pacientes entre as duas cidades é feito em duas ambulâncias mais simples, compradas com recursos do Ministério da Saúde. Nenhuma delas tem o suporte avançado de vidas.

Nas remoções, que chegam a durar três horas entre as duas cidades, muitas vezes é preciso improvisar o transporte dos pacientes com cilindros de oxigênio, colocando em risco de explosão todos os que acompanham a remoção. Em um caso relatado por um entrevistado, o oxigênio foi insuficiente, e o paciente precisou ser ventilado manualmente até Boa Vista.

"Se o paciente vai morrer no meio do caminho até Boa Vista, a gente prefere que morra em Pacaraima. Assim podemos dar um mínimo suporte a ele", diz Laura*, que também é médica em Roraima e falou na mesma condição de se manter anônima.

Segundo João, o centro cirúrgico de Pacaraima está fechado há anos, e o hospital Geral de Boa Vista só faz cirurgias de emergência --as eletivas estão proibidas desde o ano passado, quando o centro em que os procedimentos agendados eram realizados foi interditado pelo CRM-RR (Conselho Regional de Medicina de Roraima) por falta de estrutura (desabastecimento de medicamentos e falta de materiais cirúrgicos). 

Pacientes com fraturas graves foram mandados para casa por não poderem fazer cirurgia em Boa Vista
João*, médico, sob anonimato

Questionado sobre a falta de estrutura e a improvisação dos profissionais de saúde para tratar os pacientes, o secretário da Saúde de Roraima, Ailton Wanderley, afirmou que o estado usa todos os recursos disponíveis para os atendimentos. "Agora, aqui não é São Paulo. Você não está em um hospital de grande porte, é uma cidade com 10 mil habitantes [em referência à Pacaraima, que, segundo estimativas do IBGE, teria mais de 15 mil pessoas]. Você não tem todos os recursos disponíveis. Não é tão simples assim", diz o secretário.

Questionado sobre o impacto da falta de estrutura, de insumos e de medicamentos para as remoções improvisadas, o secretário destacou que a responsabilidade pelo transporte é dos profissionais envolvidos na remoção.

Hospital Geral de Boa Vista, em Roraima - Avener Prado/Folhapress - Avener Prado/Folhapress
Atendimento no Hospital Geral de Boa Vista, em Roraima
Imagem: Avener Prado/Folhapress

Segundo o secretário, o governo estadual, por meio do decreto de estado de calamidade pública, já está tentando providenciar os medicamentos e insumos que faltam nos hospitais. Segundo ele, a situação deve começar a ser regularizada a partir da segunda quinzena de março. Compras mais emergenciais já estão sendo feitas, relata Wanderley.

O secretário, que também é um dos proprietários de um hospital particular em Boa Vista, afirmou ainda que a migração venezuelana teve um impacto muito grande no sistema de saúde. "Não estávamos preparados para dobrar a capacidade de atendimento em tão pouco tempo", disse o secretário, que está no cargo desde janeiro. "Por exemplo, no dia do confronto do outro lado da fronteira, recebemos cerca de 30 pacientes em estado grave, com ferimentos de armas de fogo de grosso calibre, e eles ocuparam a maior parte dos leitos da UTI do grande trauma. A gente não tinha mais onde colocar gente", relatou.

Aqui não é São Paulo. Você não está em um hospital de grande porte
Ailton Wanderley, secretário de Saúde de Roraima

Na entrevista, feita por telefone, Wanderley disse ainda que a interdição do centro cirúrgico do hospital geral de Boa Vista pelo CRM não foi uma medida "assertiva". "A gente não pode fechar os centros cirúrgicos que atendem à população. Eles alegam que vão manter tudo fechado até que a crise de desabastecimento for resolvida. Mas esse é um embate que vai ser feito entre o governo e as autoridades", diz. "Nesse momento, era importante assegurar que estas unidades estivessem funcionando pelo menos para as cirurgias de menor complexidade para desafogar a rede", argumenta.

O profissional do sistema de saúde que conversou com o UOL sob anonimato relatou que nem mesmo as biópsias estão sendo realizadas. "Entre os pacientes da ortopedia, estamos criando em Roraima um exército de deficientes físicos. Há pacientes com fraturas graves que foram mandados para casa por não poderem fazer a cirurgia em Boa Vista", conta. 

O Hospital Geral de Roraima (HGR) é o único na região com capacidade para atendimentos de média e alta complexidade, recebendo brasileiros, venezuelanos, cidadãos da Guiana, estrangeiros que trabalham nos países vizinhos e na região amazônica e indígenas.

No caso de Pacaraima, a situação é ainda mais grave: o hospital da cidade, o Délio de Oliveira Tupinambá, faz partos normais, mas procedimentos de maior risco, como uma cesárea, não são viáveis --é para lá que as grávidas venezuelanas que vêm ao Brasil para ter filhos são encaminhadas.

"Teve casos em que recebemos gestantes venezuelanas e precisamos mandar para o hospital de Santa Elena do Uairén, ainda que a contragosto da paciente. Por mais que lá não tenha insumos ou medicamentos, a estrutura é mais moderna e permite uma cesárea mais segura, ainda que feita de forma improvisada", relata o profissional.

Laura diz ainda que, diante da falta de insumos, o hospital de Pacaraima já chegou a receber doações --como soro fisiológico-- do pouco que o hospital de Santa Elena tem para que o atendimento fosse feito em Pacaraima. "No hospital, só fazemos partos naturais e somente quando é a segunda gestação. Se for o primeiro parto da mulher, não temos estruturas para o caso de ser necessário qualquer auxílio, e a mulher é transferida para Boa Vista. Mas, quando não dá tempo de arriscar a viagem, a mulher volta para Santa Elena", diz a médica.

* Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.