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O que é o globalismo, em debate pelo Itamaraty, segundo oito especialistas

O assessor Filipe Martins, Olavo de Carvalho, o presidente Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro em jantar em Washington em março - Reprodução/Twitter
O assessor Filipe Martins, Olavo de Carvalho, o presidente Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro em jantar em Washington em março Imagem: Reprodução/Twitter

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

24/05/2019 04h00

Teoria da conspiração, slogan político, ideologia ou projeto de poder? O Ministério de Relações Exteriores realizará um evento em junho para discutir o globalismo, duramente criticado por representantes da ala olavista do governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Entre os debatedores, aparecem o chanceler Ernesto Araújo e o assessor para assuntos internacionais do governo, Filipe Martins, um dos alunos mais famosos atualmente do escritor e guru bolsonarista, Olavo de Carvalho, grande crítico do globalismo.

O evento será realizado na Funag (Fundação Alexandre de Gusmão), organismo ligado ao Itamaraty para estudos e atividades ligadas às relações internacionais, no próximo dia 10, em Brasília. O próprio ministro Ernesto Araújo tem um blog chamado "Metapolítica 17 - Contra o Globalismo" --ele deixa claro que as posições são dele, e não da chancelaria brasileira.

Para explicar o que é o globalismo que os antiglobalistas bolsonaristas combatem, o UOL ouviu professores de relações internacionais e buscou declarações de especialistas ligados ao debate sobre o tema, além de falas de Araújo e Martins.

O que é o globalismo --na concepção dos antiglobalistas

O conceito de globalismo refere-se a um projeto político de um governo global. Tem origem no período entre a Primeira e a Segunda Guerra, e a ideia parte de uma tentativa de construção de uma comunidade internacional institucionalizada para alcançar a paz.

Filipe Martins, em sua explicação, define que o diagnóstico que os criadores do globalismo fizeram na época era "basicamente que o problema todo da guerra tinha relação com os nacionalismos, com as nações, com as soberanias. Eles acreditavam que nós tínhamos chegado a um momento em que se justificava a criação de outros organismos internacionais para tomar o destino das nações, das relações internacionais, nas suas próprias mãos".

Os antiglobalistas citam os 14 pontos defendidos pelo ex-presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson, no Congresso americano, em defesa de uma espécie de "paz sem vencedores". A lista é considerada como um embrião da Liga das Nações, que antecedeu a ONU (Organização das Nações Unidas), criada após a Segunda Guerra, em 1945.

Entre os pontos aparecem itens como abolição, "quando for possível", de barreiras econômicas, redução de armamentos nacionais, diplomacia franca, liberdade de navegação na paz e na guerra e pontos relacionados ao conflito, como a restauração do território belga e das fronteiras italianas e a independência da Polônia.

Para antiglobalistas, estas organizações internacionais são pouco transparentes e facilmente influenciadas por lobistas, como as grandes fundações --daí os ataques contra George Soros e sua Open Society e à ONU.

O projeto teria origem em famílias famosas como os Rothschild, e posteriormente os Carnegie e Rockefeller, que teriam usado a filantropia para dominar entidades internacionais --e predominar culturalmente no mundo, numa espécie de projeto para estabelecer um governo mundial, promovendo a destruição de todos os valores judaico-cristãos.

As principais pautas dos globalistas seriam o feminismo, os direitos de minorias, a ideologia de gênero, o aborto, o secularismo, as políticas ambientais e a imigração.

"As Nações Unidas são vistas como um grande monumento ao globalismo. Não por acaso é o grande alvo das investidas dos antiglobalistas, profundamente incomodados com o que a ONU representa, um monumento à diversidade dos povos para construir soluções conjuntas para problemas que acometem a humanidade", explica Dawisson Belém Lopes, diretor-adjunto de relações internacionais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

"O objetivo desse governo globalista seria controlar as pessoas não exclusivamente pela economia, mas pela aculturação e imposição de uma cultura transnacional. As mudanças culturais não viriam de processos revolucionários, mas da corrosão lenta dos pilares da civilização ocidental, de matriz judaico-cristã: Deus, a nação e a família. O socialismo é instrumento de aculturação", explica o professor de relações internacionais Guilherme Casarões, da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Teoria da conspiração ou esquerda global?

Segundo David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), academicamente não há como "tipificar a existência de nenhum fenômeno como globalismo". "Se você pega o fenômeno da globalização, por exemplo, existem diversos estudos, teorias, explicações, pesquisas voltadas para tentar compreender este fenômeno."

Agora o globalismo, tal qual é concebido por esses ideólogos e parte destas lideranças políticas, como esquema de dominação global que visa destruir soberanias nacionais e promover a própria destruição da civilização ocidental, ele só existe na cabeça destas pessoas, e não como fenômeno concreto e observável.
David Magalhães, professor da PUC-SP

Para Paulo Velasco, professor de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o conceito de globalismo "é algo inventado, quase metafísico, que reflete uma perspectiva de teoria conspiratória de uma esquerda global".

"A ideia de globalismo enxerga a existência de um movimento de caráter global que resultaria na perda de prerrogativas soberanas, quase que levando à constituição de uma espécie de governo mundial, e os Estados virariam reféns desse movimento globalista. Eles fazem uma confusão quando enxergam a própria globalização como um sinal desse movimento globalista", diz o especialista.

Para Dawisson Belém Lopes, da UFMG, o globalismo também "tem muito de discurso conspiratório". "E um dos alvos é George Soros, o megainvestidor húngaro, uma figura que representa o que o globalismo teria de pior para os antiglobalistas, que é o mercado financeiro corroendo a soberania dos Estados nacionais e agindo em favor de uma elite global."

"Esse globalismo encantado, materializado pela ONU para os antiglobalistas, é institucional. Ele tem esse caráter universal, que relaxa o pressuposto da soberania territorial, ao menos na vertente dura, segundo a qual cada Estado teria suas fronteiras impermeáveis, seria absolutamente senhor do seu destino, e só ele seria capaz de influenciar os processos que ocorrem dentro das suas fronteiras nacionais. A gente sabe que não é assim que funciona. Essa é uma concepção nostálgica, quase romântica. Essa soberania territorial é muito mais idealizada por quem critica o globalismo do que qualquer outra coisa", analisa o professor da UFMG.

Casarões, da FGV, lembra ainda que globalismo e globalização não são sinônimos. "Combater o globalismo não significa lutar contra o livre comércio, desde que ele não comprometa a soberania das nações e sua integridade política e cultural", explica o professor. "Para um antiglobalista, políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro são os que salvarão o Ocidente do seu colapso iminente, derrotando o projeto globalista", exemplifica.

Em entrevista à BBC Brasil, o cientista político americano Joseph Nye, professor da Universidade Harvard e criador do conceito do "soft power" (poder brando, a capacidade de um país de influenciar decisões por seu poder de persuasão), chama o globalismo de "slogan político usado por líderes nacionalistas-populistas para condenar elites envolvidas em negócios globais, como comércio e instituições internacionais".

Maurício Santoro, também professor de relações internacionais da Uerj, ressalta que o globalismo tem sido muito utilizado pelos grupos da nova direita brasileira, especialmente os olavistas. "Em grande medida, é trazer para o debate político brasileiro uma agenda ideológica que nasceu nos EUA e em parte da Europa ocidental e adaptá-la para o cenário brasileiro. No Brasil, esses grupos afirmam que não são contra a globalização, mas apenas contra o que eles acreditam ser um processo de globalização influenciado e dominado por essas elites cosmopolitas e liberais internacionais. Então eles têm defendido o retorno a uma identidade nacional brasileira mais ligada ao cristianismo e ao nacionalismo", analisa o professor.

Como os bolsonaristas abraçam o antiglobalismo?

Filipe Martins, assessor de Bolsonaro que se define como antiglobalista, define o globalismo como uma "ideologia que acredita que todos os problemas que temos hoje no mundo são melhor abordados, melhor atacados, se feitos desde uma perspectiva global, ou seja, não nas instâncias decisórias nacionais, mas nas instâncias decisórias supranacionais".

Em entrevista para o site Infomoney, Martins explica, antes de assumir o cargo no Planalto, que "do ponto de vista teórico-conceitual, a gente tem que classificar o globalismo como uma ideologia, como um projeto de poder, uma visão até um certo ponto utópica" que dilui "a força das nações".

Segundo o próprio chanceler, globalismo é "a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural".

"Essencialmente é um sistema anti-humano e anticristão. A fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e Deus irrelevante", diz o ministro em seu blog, criado semanas antes do primeiro turno da eleição presidencial.

"O globalismo se constitui no ódio, através das suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos contrários à nação, contrários à natureza humana e contrários ao próprio nascimento humano. Nação, natureza e nascimento, todos provêm da mesma raiz etimológica, e isso se dá porque possuem entre si uma conexão profunda. Aqueles que dizem que não existem homens e mulheres são os mesmos que pregam que os países não têm direito a guardar suas fronteiras", disse Araújo em seu discurso de posse.

Nós vamos lutar para reverter o globalismo e empurrá-lo de volta ao seu ponto de partida.
Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores

O próprio Movimento, grupo que está sendo criado pelo ex-estrategista de Donald Trump Steve Bannon, tem como missão defender o antiglobalismo e o nacionalismo. Seu representante no Brasil é o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), ex-aluno de Olavo.

"Trabalharemos com ele para recuperar a soberania surrupiada pelas forças elitistas globalistas progressistas e expandir o nacionalismo para todos os cidadãos da América Latina", disse Eduardo ao anunciar sua participação no Movimento de Bannon, que deve ter sede na Itália. O deputado federal é presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara.