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Sem lado na guerra, China prioriza negócios e evita comparação por Taiwan

O presidente da Rússia, Valdimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping - Alexei Druzhinin/AFP
O presidente da Rússia, Valdimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping Imagem: Alexei Druzhinin/AFP

Leonardo Martins

Do UOL, em São Paulo

06/03/2022 04h00Atualizada em 07/03/2022 14h20

Enquanto países ocidentais, como Estados Unidos e nações europeias, deixaram claro rapidamente seus posicionamentos contra a invasão da Rússia à Ucrânia, a China manteve cautela e, no máximo, se ofereceu para mediar as conversas entre os dois países.

Para especialistas ouvidos pelo UOL, a oferta de Pequim vai além da neutralidade —a atuação do país diante desse conflito mantém a tradição das relações exteriores da China, de evitar confronto e prezar pelas negociações comerciais. As falas do país oriental chamaram a atenção desde o começo da guerra, quando não usavam nem o termo "invasão".

No começo de fevereiro, na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, o presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês, Xi Jinping, fizeram um pronunciamento juntos dizendo que "não há limites" na parceria entre os dois países.

Nesta semana —depois da invasão à Ucrânia—, a ONU (Organização das Nações Unidas) votou uma resolução que condena os ataques russos. Cinco países votaram contra e 141, a favor. A China não foi a favor nem contra: absteve-se da votação, junto de outros 34 nações.

Aline Tedeschi, professora de Relações Internacionais na Universidade de Hunan (China) e coordenadora do Observa China, diz que a palavra que melhor resume essa tradição chinesa na política externa é "ambiguidade".

A China tem histórico de abstenções na ONU. Sua preferência é pelas negociações. Por isso, não vejo a posição da China como contraditória. Sua política externa aceita ambiguidades que, inclusive, têm origem nas raízes da própria filosofia chinesa."
Aline Tedeschi, professora de Relações Internacionais

O que importa, enfim, são os interesses de cada país. E a China sabe bem definir os seus, segundo o professor da Universidade Federal do Rio Grande Luciano Vaz, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais,

"Devemos sempre lembrar que os países não possuem amigos, mas interesses. A China tem adotado uma posição de neutralidade no conflito Rússia e Ucrânia porque o país possui interesses comerciais em várias partes do mundo, inclusive na Rússia e na Ucrânia. Uma posição enfática de condenação ou apoio só iria prejudicar suas relações com a Rússia ou com o Ocidente", avalia.

Em 2013, em meio aos intensos protestos pela deposição do presidente ucraniano Víktor Yanukóvytch, a Ucrânia anunciou ter fechado acordo de R$ 8 bilhões em investimentos vindos do governo chinês. A China é o principal parceiro comercial da Rússia —com acordos na casa dos R$ 100 bilhões—, enquanto os russos também fornecem importantes insumos à Pequim, como gás natural e minério de ferro.

"As sanções a longo prazo contra a Rússia perdem força. Os russos poderão comprar muitos produtos da China com as sanções. A China comprará produtos do Ocidente e poderá vender pela sua moeda aos outros países", afirma Charles Pennaforte, professor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do LabGRIMA (Laboratorio de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos).

Luciano Vaz segue na mesma linha. "O mais curioso é que essa oportunidade [de estreitar laços econômicos com a Rússia] talvez surja justamente por conta das sanções econômicas contra a Rússia, que terá que se aproximar ainda mais da China para sobreviver", pontua.

Há também questões geopolíticas

Mas há um componente geopolítico importante a ser considerado. Para os especialistas, a neutralidade da China se dá também por não ver com bons olhos a expansão da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) —liderada pelos Estados Unidos. Essa foi uma das razões usadas por Putin para invadir a Ucrânia, que negociava a entrada no grupo ocidental.

"Não é interessante para a China a expansão da Otan na região porque traz sensação de instabilidade. A China apoia a Rússia em termos de razões [por ser contra a expansão da Otan], mas não em ações [invadir a Ucrânia]", diz Aline Tedeschi.

É bom ter um aliado do tamanho da Rússia na Ásia. As costas chinesas estão bem protegidas pela Rússia. A postura da China é sempre mirando o que pode ser feito contra ela. Para o Ocidente, a China é um alvo."
Charles Pennaforte, professor

Quando a Rússia anexou a Crimeia, importante região comercial abaixo da Ucrânia, em 2014, a China se recusou a reconhecer o domínio russo. O que pode representar mais uma ambiguidade chinesa: para Pequim, é primordial a soberania de cada nação, mas esse não é o caso de Taiwan.

Conflito com Taiwan?

O conflito entre Pequim e Taiwan foi citado nos últimos dias e comparado às divergências antigas entre Ucrânia e Rússia. Rússia e China veem os dois países como territórios historicamente seus, na análise de especialistas.

Taiwan era território chinês até ser separado após a Revolução Chinesa em 1949, quando Mao-Tsé Tung instaurou o governo socialista. O governo derrubado pela revolução se refugiou com milhões de pessoas na ilha de Taiwan, a 130 km do litoral chinês.

A ilha se deu autonomia, com o apoio dos Estados Unidos. O governo chinês ameaça invadir o território desde então, em briga pública com os EUA, que ainda defendem Taiwan.

Da mesma forma, a Ucrânia já foi território do Império Russo —Kiev, hoje capital da Ucrânia, chegou a ser capital da Rússia. A Ucrânia seguiu sendo território russo a partir de 1917, data da Revolução Russa e instauração da União Soviética, e se separou com a dissolução do regime, em 1991.

Antes da invasão russa à Ucrânia, instigado por comentários do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, o governo chinês negou a comparação entre o caso ucraniano e o de Taiwan. Para Pequim, Taiwan "não é a Ucrânia" e sempre foi uma parte inalienável da China.

Para Aline Tedeschi, "a régua do Ocidente" pode enxergar semelhanças entre as relações de China e Rússia com Taiwan e Ucrânia, respectivamente, "mas não podemos nos precipitar nas conclusões, apenas traçar semelhanças, que são de níveis mais rasos".

"Ao mesmo tempo, a China não irá aceitar provocação aos seus territórios sensíveis. É como se dissessem: não vou interferir no território de ninguém, mas não vou aceitar que ninguém interfira nos meus", diz a professora.

A importância econômica de Taiwan e Ucrânia também são diferentes. A ilha tem desenvolvimento tecnológico de ponta e é a principal vendedora de semicondutores —espécies de chips— usados em aparelhos eletrônicos. Taiwan é indispensável tanto para EUA quanto para China.

Nova Ordem Mundial?

Para os especialistas, é inegável que há um movimento da China de se tornar o país com maior protagonismo mundial, tirando a coroa que sempre esteve mais próxima de Estados Unidos e União Europeia.

Há estimativas que já colocam a China como principal economia do mundo em poucos anos. Um exemplo recente dessa disputa entre China e Ocidente são as próprias vacinas contra a covid-19, como o UOL noticiou. O coronavírus foi relatado pela primeira vez na China, e o país apresentou rapidamente imunizantes contra a doença.

Charles Pennaforte avalia que Pequim não tem um projeto de hegemonia "violento", mas vem se preparando para assumir este posto. "A China não precisa de dinheiro externo. Ela é investidora global e fábrica do mundo ocidental. Um exemplo disso é que iPhones, da Apple, são produzidos na China. O país também vem tirando a influência do dólar", opina

"Os países ocidentais batalham para manter a supremacia nas decisões mundiais, mas a China tem um projeto a longo prazo. Existe uma mudança na ordem mundial desde o século 20. Pequim é mais bem preparada para esse novo mundo, que não será mais Euro-Atlântico", conclui.

Por outro lado, Luciano Vaz, minimiza a formação dessa Nova Ordem Mundial com China e Rússia e analisa como uma questão de interesses.

"Ambos países possuem interesses diversos e competem entre si. Mas também convergem em alguns pontos em comum, como por exemplo a defesa de suas zonas de influência, o que gera colaboração. Não existem alianças eternas, é tudo contingencial".

"A China está em marcha para possivelmente se tornar a maior economia do mundo. Tal situação pode colocá-la em rota de colisão com os Estados Unidos, atual líder, que obviamente não quer perder esta condição. Tanto a China quanto a Rússia contestam a hegemonia norte-americana, é um ponto que compartilham em comum e que pode sustentar uma aproximação entre os dois países", opina.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, Luciano Vaz é professor da Universidade Federal do Rio Grande, e não da Universidade Federal de Pelotas. O texto foi corrigido.