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Guerra da Rússia-Ucrânia

Notícias do conflito entre Rússia e Ucrânia


Entre agredidos e agressores, por que precisamos de jornalistas na guerra

6.mar.2022 - Jornalistas correm para se proteger após bombardeios pesados na Ucrânia - CARLOS BARRIA/REUTERS
6.mar.2022 - Jornalistas correm para se proteger após bombardeios pesados na Ucrânia Imagem: CARLOS BARRIA/REUTERS

André Liohn

Colaboração para o UOL, em Roma

01/04/2022 04h00

Cheguei em minha casa, em Roma, depois de um mês de cobertura intensa sobre a guerra na Ucrânia. Finalmente, seguro e com tempo, pude pensar com mais calma sobre as coisas que vi e vivi naquele país.

Para mim, parece que o que vemos na Ucrânia neste momento é o nascimento de um fenômeno muito parecido com aquele que forjou Saddam Hussein (1937-2006), no Iraque.

O governo ucraniano está recebendo armas apenas pelo "mérito" de ter sido invadido e me parece absurdo que dois povos praticamente idênticos não tenham conseguido chegar a um diálogo político nem encontrado uma via diplomática para o conflito, após mais de um mês da escalada dos ataques.

Pode ser que a relação entre os dois países tenha se desgastado ao longo dos anos, com a necessidade de cada um tomar outros rumos e defender seus próprios interesses — como se fosse um casal se separando, apesar da longa história juntos, dos bens e dos filhos, e ainda tendo a responsabilidade de zelar juntos pela educação deles.

Sem coragem de tocar no assunto quando as insatisfações começaram, guardaram para si as mágoas e a convivência se tornou insuportável.

Eles poderiam ter encontrado suas próprias soluções, mas, azarados que foram, Rússia e Ucrânia caíram exatamente nas mãos dos piores advogados, apenas interessados em lucrar e com sua própria ganância.

Agredida e agressora

Como o Iraque, durante e depois da guerra contra o Irã, a Ucrânia também tem uma grande parcela de sua população que deseja se separar. Seja para se tornarem repúblicas independentes, seja para se unirem à Rússia.

Por isso, é temeroso o aporte dessa grande quantidade de armas, apoio econômico e logístico dos Estados Unidos.

Enquanto estiver sendo atacada, isso tudo serve para que o governo ucraniano legitimamente se defenda dos agressores. Mas, assim que o jogo se reverter, a Ucrânia deixará de ser a agredida para se tornar a agressora. Seus primeiros alvos serão as regiões separatistas, com a morte de civis inocentes. Aliás, isso já está acontecendo.

O papel da imprensa

A imprensa também comete seus equívocos nessa guerra, que continuo considerando como um erro indefensável. Muitos jornalistas deixam de lado fundamentos básicos e aceitam como verdades incontestáveis as versões oferecidas pelo governo ucraniano.

A cobertura jornalística em muitos casos pareceu menos interessada em explicar o que estava acontecendo na Ucrânia e mais preocupada em sustentar qual lado do conflito deve ser apoiado pela população.

As intimidações contra jornalistas locais e estrangeiros têm sido outro grande obstáculo. Recentemente, o Instituto de Comunicação em Massa, organização pública ucraniana que defende a liberdade de expressão, publicou uma carta aberta para que o presidente Volodymyr Zelensky e o Ministério das Forças Armadas parassem o assédio contra jornalistas e pedindo regras transparentes de trabalho para a mídia.

A carta relata os inúmeros casos de agressões cometidas por milicianos, policiais e soldados ucranianos contra jornalistas trabalhando principalmente (mas não apenas) na região de Kiev.

Mas estamos falando de jornalismo, não de ativismo midiático. E dizer que a mídia tem um lado na guerra, favorável à Ucrânia, coloca em risco os jornalistas que cobrem o lado russo.

Um oficial do Exército ucraniano inclusive encorajou soldados a atacarem jornalistas que trabalham do outro lado com o argumento de que eles não são "aliados".

Precisamos de jornalistas de guerra cobrindo conflitos. Guerras sempre farão os mais vulneráveis sofrerem primeiro e ainda por cima mais intensamente.

Se os governos envolvidos continuarem impedindo que jornalistas tenham acesso as zonas de combate, é razoável presumirmos que ambos estão escondendo crimes.

Vitimizar para esconder é também uma velha estratégia de manipulação da informação.

Muitos veículos de comunicação enviaram seus correspondentes para a Ucrânia, mas os mantiveram longe do conflito — por exemplo, na cidade de Lviv, onde a vida continua muito próxima da normalidade.

Mas os sons, as cores e texturas e até o cheiro da guerra servem para que o jornalista possa identificar os efeitos das armas sobre aquilo que destruiu, sobre os corpos que feriu e sobre as vidas que ceifou.

São igualmente importantes as vozes da guerra, para mostrar os verdadeiros protagonistas nesse cenário cruel. E mesmo visitar os lugares para realmente confirmar ou contestar alegações em cada momento.

Cansado pelo esforço e por todas essas inquietações, ao chegar em casa, bisbilhotei a vida dos meus amigos nas redes sociais. Foi com assombro que vi um post no Facebook de Nick Ut, grande fotógrafo em guerras e autor da imagem da garota vietnamita vítima de um ataque de napalm. Ele compartilhou uma montagem de Zelensky, sorridente, fazendo uma selfie ao lado do corpo do presidente Vladmir Putin em um caixão.

Lembrei-me de 20 de outubro de 2011, quando o ditador Muhammar Gaddafi foi linchado e assassinado pelos rebeldes líbios com ajuda dos EUA e da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Seu corpo mutilado fez formar filas de pessoas que queria fotografar o que havia sobrado dele.

Com os narizes e as bocas tapadas com uma das mãos, para que o fedor da putrefação do cadáver não estragasse a festa, eles não sabiam que em pouco tempo a Líbia se tornaria um lugar muito pior que havia sido durante os 42 anos de seu comando.

Um pensamento me corrói: notar que a Ucrânia pode se tornar uma nova Líbia.