Ela virou 'jornalista' do horror em Gaza aos 9: 'Destruíram até parquinhos'
Sofia Pilagallo
Colaboração para o UOL, em São Paulo
07/04/2024 04h00
Lama Abu Jamous tem nove anos, mas sua rotina em nada se parece com a de uma criança comum.
Nos últimos meses, ela tem se dedicado a documentar os destroços na devastada Faixa de Gaza, sua terra natal, alvo contínuo de ataques israelenses desde 7 de outubro.
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Apesar da pouca idade, Lama já sabe muito bem o que quer ser quando crescer: jornalista. E compartilha seu trabalho com quase 900 mil seguidores no Instagram.
"Quero ser uma grande jornalista para mostrar a verdade ao mundo", afirma Lama em entrevista ao UOL.
"Jornalistas e correspondentes que trabalham em Gaza estão sendo perseguidos pelos israelenses", acrescenta ela, citando como exemplo Wael Al-Dahdouh, correspondente da Al Jazeera que, em novembro, perdeu esposa, filha, filho e neto em um bombardeio.
Destruíram nossas vidas, nossas memórias e até nossos brinquedos. O que nós, crianças inocentes, fizemos para merecer isso? Queremos viver e aproveitar nossas vidas e nossa infância.
Desde que a guerra começou, ela pegou o celular e passou a documentar a situação ao seu redor.
Em algumas imagens, vestindo um colete e um capacete azuis, personalizados para profissionais de imprensa e ajustados para o seu tamanho, ela caminha sobre os destroços de casas atingidas pelos bombardeios.
Em outras, anda pelas praias de Gaza, tentando dar um pouco de esperança a seus seguidores.
"Estamos agora na linda praia de Gaza, que amamos tanto e frequentamos todo verão", afirma Lama em um vídeo. "Como vocês podem ver, até mesmo os parquinhos foram destruídos", acrescenta ela, apontando para um balanço quebrado.
Nós queremos voltar a construir parquinhos para as crianças e vê-las brincando neles.
Sonho de ser jornalista
Movida pelo senso de justiça, Lama sonha em ser jornalista desde que se entende por gente. A vontade nasceu a partir da atividade do pai, repórter da Al Jazeera, a principal rede de mídia do mundo árabe.
Um tio de Lama, Ahmad Abu Jamous, declarou à Al Jazeera que a menina sempre foi uma pessoa sociável e, desde muito nova, gostava de se envolver em discussões —o início da guerra foi o chamado para que ela passasse a documentar a situação.
Lama trabalha também para dar voz ao povo palestino. Enquanto caminha pela cidade, ela fala com pessoas, em especial mulheres e crianças, para denunciar as precárias condições em que vivem seus conterrâneos.
'Barulho dos bombardeios'
A menina também registra momentos críticos da própria vida em meio à guerra, como quando foi obrigada a se deslocar com a família para Rafah.
"Arrumei minha mala e aqui estão todas as minhas coisas", diz Lama, apontando para uma pilha de malas e sacos cheios de roupas. "Este é meu ursinho de pelúcia favorito. Hoje vamos para Rafah por causa do barulho dos bombardeios, que ficou muito próximo de nós."
Recentemente, Lama visitou a casa onde morou durante toda a vida, em Khan Yunis, e descobriu que ela foi totalmente destruída. Segundo ela, o sentimento foi de "dor e tristeza". Mais de metade das casas de Gaza — cerca de 360 mil — foram destruídas ou danificadas desde o início da guerra.
Vidas perdidas
Os ataques israelenses já deixaram mais de 32 mil mortos, incluindo mais de 13 mil crianças e 8.400 mulheres. Lama perdeu vários familiares, entre eles a tia Sana, o tio Gabriel, e quatro primos: Bara, Salim, Malak e Malik. Os corpos do casal e de dois dos filhos foram recuperados. Os outros dois seguem sob os escombros. Mais de 8 mil pessoas estão desaparecidas.
A população de Gaza está morrendo também de fome, sede e em decorrência de doenças, uma vez que o cerco ao território palestino impede a entrada de comboios de ajuda humanitária com produtos de primeira necessidade. Mais de 27 pessoas, incluindo 23 crianças, morreram de fome no enclave nas últimas semanas.
"Pessoas inocentes, mulheres e crianças, estão sendo mortas sem piedade", diz Lama. Ela e outras crianças se reúnem perto de fios elétricos abandonados, nas proximidades da fronteira Gaza-Egito, para brincar.
Acredito que ninguém esperava uma catástrofe assim, tão grande. Estamos cansados dessa vida e queremos que essa guerra acabe.