'Tinha que sobreviver': afegão fala de fuga e sonho de rever família

A primeira viagem de avião do afegão Mohammed Yahya, 20, foi sucedida por uma série de experiências difíceis, mas acontecia com muita esperança na bagagem. Depois de fugir do país natal e passar um ano no Irã, ele viu no Brasil uma chance de recomeço e, mais do que isso, proporcionar uma nova vida para a família.

Pensei na minha família, nos meus irmãos e irmãs e em como eles não podem ter uma vida melhor no Afeganistão. Eles não podem estudar, ir à escola, às universidades. Com esses pensamentos, decidi vir ao Brasil para fazer um caminho para eles terem uma vida melhor. Mohammed Yahya

Desde 2021, depois que tropas estrangeiras deixaram o Afeganistão sem um projeto de transição política, o Talibã reassumiu o poder e centenas de pessoas deixaram o país. Entre os motivos estão as perseguições, as dificuldades econômicas e a proibição do acesso à educação para mulheres.

Único integrante da família com passaporte, Mohammed agarrou a primeira oportunidade para deixar o país, aos 19 anos. Viajando sozinho —e pela primeira vez—, o jovem tinha o intuito de abrir os caminhos para, posteriormente, o restante dos familiares saírem também. Ele foi para o Irã e, mais tarde, veio ao Brasil, onde ficou 20 dias acampado no Aeroporto Internacional de Guarulhos antes de receber acolhida.

Os pais dele, os dois irmãos e as três irmãs continuam no Afeganistão, ainda que já tenham conseguido acesso ao passaporte.

Quando o Talibã assumiu, não tivemos boas oportunidades. A vida começou a ser pior do que antes. Mohammed Yahya

'Olhava pela janela e pensava na minha família'

Mohammed ficou cerca de um dia em um ônibus para deixar Afeganistão. "Foi minha primeira experiência viajando sozinho. Eu não conhecia ninguém. Fui para o Irã de ônibus, em uma viagem que durou cerca de 24 horas."

Toda vez que eu olhava pela janela, eu pensava na minha família e não acreditava que estava indo sozinho, sem eles. Mohammed Yahya

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A ideia era estudar engenharia mecânica em uma universidade iraniana. "Quando cheguei ao Irã, as coisas não foram fáceis. Não conseguia falar muito com minha família porque não tinham internet. Estudei um ano, então fiquei sabendo que o Brasil estava dando vistos humanitários para os afegãos. Resolvei tentar, por ver nisso uma oportunidade da vida ser melhor."

'Quando recebi o visto, não estava feliz'

Depois de um ano no Irã, Mohammed conseguiu visto humanitário para vir ao Brasil. "Como minha primeira viagem não tinha sido uma boa experiência, fiquei com receio de vir ao Brasil. Imagina, o Irã é nosso vizinho e experimentei muitos problemas. Não foi bom para mim. Gostaria de ter continuado a educação no Irã, mas lá não seria melhor."

Ao chegar no Brasil, ele ficou 20 dias acampado no Aeroporto de Guarulhos. "Foi um pouco difícil, mas eu tinha esperança. Sabia que tinha que sobreviver para as coisas melhorarem."

Depois ele foi para um centro de acolhimento na cidade. "Fiquei três meses, mas não fazia nada. Existia apenas um lugar para ficar e outro para comer. Nada importante, nada mais. Isso não foi bom para mim. Tive depressão porque sentia que estava perdendo meu tempo. Queria encontrar uma oportunidade de trabalho, de estudo."

'Não entendia as pessoas e elas não me entendiam'

Mohammed Yahya agora faz aulas de português e sonha em conseguir um trabalho formal no país
Mohammed Yahya agora faz aulas de português e sonha em conseguir um trabalho formal no país Imagem: André Naddeo/Planeta de TODOS
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Ele deixou Guarulhos e decidiu morar em São Paulo para aprender português. "Apliquei em três lugares para aprender o idioma e fiquei um tempo em São Paulo. Foi difícil porque não temos muita chance. É muito importante se comunicar, mas não sabia falar nada. Era difícil ir ao supermercado, comprar algo. Não entendia as pessoas e elas não me entendiam."

Foi então quando ele conheceu o projeto Planeta de TODOS, em Ribeirão Preto. "Uns amigos me falaram sobre esse projeto no interior e me inscrevi. Quando vi a proposta, achei que era exatamente o que eu precisava. Nós temos aulas de português, de inglês, sobre a cultura e a história do Brasil. São ótimas para nós."

Agora, Mohammed aspira retomar os estudos enquanto sonha em ver a família reunida outra vez. "A minha esperança de ser um engenheiro mecânico continua. Quero uma oportunidade na universidade e quero conseguir um trabalho. Assim, posso ajudar minha família e trazê-los para cá. Amo as pessoas brasileiras, acho que são muito amigáveis. Quando penso que posso viver aqui, continuar minha vida aqui, fico feliz."

Uma nova chance

ONG apoia acolhida de refugiados afegãos no Brasil
ONG apoia acolhida de refugiados afegãos no Brasil Imagem: André Naddeo/Planeta de TODOS

Das 9 mil pessoas em situação de refúgio do Afeganistão que vieram ao Brasil, cerca de 700 conseguiram trabalho formal. Desde 2021, o Brasil se tornou destino para os afegãos. Em setembro daquele ano, após a retomada do Talibã ao poder, uma portaria interministerial autorizou o visto de residência temporário por razões humanitárias.

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Afegãos ficaram acampados no aeroporto aguardando acolhida. Um acampamento improvisado se estabeleceu no mezanino do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de Guarulhos desde o início da chegada dos afegãos. Eles permanecem no local até a chegada da acolhida. O acampamento já chegou a abrigar mais de 200 pessoas e no ano passado enfrentou um surto de escabiose.

Diante do cenário, o Brasil mudou a política de acolhida dos afegãos. Desde setembro de 2023, os vistos só são concedidos se houver disponibilidade de vagas em abrigos.

A ONG Planeta de TODOS abriu uma unidade em Ribeirão Preto para apoiar a situação emergencial. Com a lotação do mezanino do Aeroporto, a organização abriu uma filial em Ribeirão Preto (SP) para acolher e integrar os refugiados na sociedade brasileira. Além do acolhimento, a ONG ainda dá aulas de português, inglês, cultura e história brasileira. A ideia é que, em um ano, essas pessoas estejam integradas no país.

A gente teve a ideia de montar esse projeto no sentido de dar um acolhimento e trazer um lugar seguro. Porque ninguém vai conseguir pensar na vida num país se não tiver, pelo menos, onde dormir, onde comer, acesso a um chuveiro quentinho. Escolhemos trabalhar pela primeira vez no Brasil com os afegãos em função dessa emergência que ocorreu no país. André Naddeo, diretor-executivo da ONG, a missão do Planeta de TODOS

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